Mas, como já está claro, trata-se aqui de uma falsa dicotomia: uma falácia lógica em que dois pontos alternativos, tidos como contrários ou contraditórios, são tomados como únicas opções possíveis. É o caso da perspectiva que busca contrabalancear ética e biologia como duas fontes inconciliáveis.
Sendo assim, por uma questão de empatia para com a intelectualidade de quem leva o mundo a sério, é necessário mostrar que ética e biologia são não apenas conciliáveis, como também a ética só tem a ganhar quando a biologia serve para afirmá-la.
O CÉREBRO DO HOMEM E DA MULHER
VER IMAGEM Á CIMA NI LINK DA FONTE Um dos casos mais polêmicos da neurociência diz respeito ao estudo do cérebro humano. Mais especificamente, diz respeito às diferenças entre cérebros de homens e de mulheres.
Esse tipo de estudo é polêmico porque algumas pessoas entendem que ele se compara, em termos gerais, à frenologia, aquela área que aplicava delimitações entre etnias, baseadas no tamanho do crânio de diferentes tipos de seres humanos – o que dava margem para argumentações supremacistas e preconceituosas.
Porém atualmente sabemos: sim, o sexo importa.
Superado o tabu, pesquisas já demonstraram que os cérebros masculino e feminino apresentam padrões divergentes de interconectividade estrutural, particularmente entre os hemisférios.
Essas diferenças hoje são cruciais para a aplicação de boas condutas na gestão de medicamentos, por exemplo, como é o caso da descoberta de que o ibuprofeno pode tornar os homens mais emocionais, informação que pode ser usada para ajudar os homens a se abrirem mais sentimentalmente e mesmo demonstrar mais empatia – algo com efeitos éticos práticos na sociedade.
Num estudo sobre percepção da dor, em que foram avaliadas diferenças sexuais na dor relatada sobre mais de 250 doenças e condições, entre mais de 11.000 pacientes – um dos maiores estudos na área -, é demonstrado que mulheres sentem dor mais intensamente do que homens, o que torna a atenção às diferenças sexuais necessária na hora de gestar medicamentos para o tratamento de dor – outro ponto com efeitos éticos práticos, pois evitaria danos desnecessários ao indivíduo.
Ainda outro estudo mostra que drogas psicotrópicas afetam homens e mulheres de formas distintas, deixando claro que analgésicos, antidepressivos e outros medicamentos para o cérebro têm efeitos específicos conforme o gênero.
O que está em jogo aqui é a validade da percepção de que diferentes indivíduos devam ser tratados de forma igual pelos sujeitos. Refutar essa percepção não significa, porém, defender que pessoas com determinadas características devam ser subjugadas por outras, mas que a forma com que tratamos diferentes sujeitos deve seguir à risca suas particularidades. E aí está outro ponto ético importante: o princípio da equidade (tratar os desiguais desigualmente na medida de suas desigualdades), o qual assegura o devido tratamento ao indivíduo, respeitando suas particularidades.
Outra questão essencial, em termos tanto éticos quanto científicos, é a derivada de tudo o mais exposto acima: já que há diferenças intrínsecas a homens e mulheres e devemos, portanto, tratar disso com seriedade, por que drogas para mulheres são testadas exclusivamente em homens?
É fato que a pesquisa sobre medicamentos usualmente é feita em homens. Isso ocorre, infelizmente, porque pesquisadores não querem se irritar com a burocracia de justificar politicamente o motivo de fazer o teste em mulheres, dado que há muitos empecilhos e tabus sobre a existência de diferenças sexuais em nível neurológico, ocasionados pela crença pretendidamente ética de que homens e mulheres são, ao fim das contas, “iguais”.
Mas precisamos aceitar que não há como lutar contra a própria natureza. Enquanto as diferenças existirem, qualquer pretensão ética de um mundo melhor que ignore tais características não estará ajudando os indivíduos – pelo contrário, estará os ceifando de si mesmos em prol de ideologias puras.
[optinform]
O CASO DA HOMOSSEXUALIDADE
Infelizmente não trata-se apenas de ceifar o indivíduo de si mesmo, é preciso encaixá-lo em determinada conjunção ideológica. Sobre isso me refiro a algo que pode ser considerado um desserviço às questões LGBT: anular a biologia do campo da discussão em função de alguma argumentação do tipo “tudo é construção social”, como propõe a chamada teoria queer.
VER IMAGEM Á CIMA NI LINK DA FONTE
Para essa teoria, é tida como verdadeira a ideia de que não existem papéis sexuais biologicamente inscritos na natureza humana. Essa perspectiva confronta a biologia evolutiva ao ignorar que somos animais e que dificilmente a seleção natural teria ido apenas até o pescoço, como se características de performatividade de gênero e mesmo de atribuições estéticas não fossem relevantes em termos de procriação e adaptação de nossa espécie ao longo dos milênios (pode-se dizer, creio, que essa teoria é apenas mais uma variação da crítica ao darwinismo social, que torna um estudo sério num grande espantalho e tenta colocar outra perspectiva, desta vez anticientífica, no lugar).
Essa percepção é contestável quando vemos que, por mais diferentes que sejam as mais variadas culturas, não faz sentido aceitar que “sociedades ameríndias e da Oceania, separadas por mais de 50 milênios, tenham construído números similares de gênero por razões puramente culturais”, como demonstra Eli Vieira, geneticista e divulgador científico. O fato é que papel de gênero não é tudo por trás dos gêneros – há um peso biológico e evolutivo sobre a questão.
Porém não é apenas a negação da biologia para pensar as questões LGBT que as atrasam. Muitas vezes, a negação da ciência acaba condizendo com perspectivas ultraconservadoras, as quais estas mesmas minorias sociais dizem combater.
Tal associação de polos dissonantes é entendida como Teoria da Ferradura, uma teoria da ciência política que preconiza que, quanto mais aos extremos determinadas ideologias estejam, mais parecidas, na prática, elas serão.
Para exemplificar, quando uma pessoa defende que gênero é construção social ela dá margem para que líderes conservadores argumentem que, já que é construção social, então trata-se de uma opção. Da mesma forma, quando nega-se a biologia do sujeito para defender a naturalidade de seus comportamentos, Silas Malafaias da vida se apoiam nessa mentira para afirmarem que “não existe gene gay“.
Portanto, a melhor defesa que a comunidade LGBT pode fazer a si mesma é estudar biologia. É entender o que está por trás de seu comportamento, de seu organismo, de sua vida. É aceitar que não há apenas aspectos psico e sociais no sujeito, mas especialmente há aspectos biológicos, os quais são a base de todos os outros.
Se há, portanto, uma defesa ética para o respeito e a busca de equidade de tratamento e igualdade de direitos para minorias sociais, ela passa pela biologia.
O QUE ESTÁ POR TRÁS DA ÉTICA
Já demonstrei acima que ética e biologia não se confrontam, pelo contrário: juntas são mais fortes. Agora pretendo fixar o que, ao longo dos anos interessado em éticas das mais variadas (sejam axiológicas, deontológicas ou dos direitos dos animais), boas defesas éticas têm pelo menos duas características: são cumulativas e dizem respeito ao indivíduo.
1 – Cumulativas porque buscam inserir o máximo de seres no escopo ético.
Se na Antiguidade o único ser de direitos, considerado cidadão, era o homem grego acima de 21 anos (em Atenas era assim, sendo mulheres, crianças e escravos como não enquadrados na cidadania e, portanto, sem direitos como ao voto, por exemplo), na Modernidade essa visão passou a ser contestada graças a liberais como John Stuart Mill e Mary Wollstonecraft, fundamentando visões como as que hoje buscam colocar no escopo de direitos mulheres e negros, dentre outras minorias sociais.
Justamente por ser cumulativa é que a ética tem uma natureza de abrangências, em que o maior número de fatores envolvidos para definir o que seja, em termos morais, certo ou errado, terá peso definitivo em nossos julgamentos.
É o caso quando, sobre um mesmo assunto em que buscamos dizer qual é a atitude mais correta a tomarmos, pesamos tanto a dor dos indivíduos envolvidos quanto o custo-benefício social, econômico e ambiental. Já escrevi a respeito em um artigo intitulado Consumismo e Ética Animal, analisando fatores distintos para poder provar um ponto em defesa dos animais.
Portanto, estudar e mesmo defender o estudo da ética passa por defender a necessidade dos fatores somativos que dizem respeito aos indivíduos de direitos. Ontem libertamos escravos, hoje buscamos libertar minorias humanas sociais, amanhã libertaremos os animais. Um dia, quem sabe, passaremos a considerar as plantas – por mais absurdo que isto soe atualmente (pois ter soado absurdo há 300 anos que mulheres pudessem votar não significa que elas realmente não pudessem).
Uma boa ética, portanto, considerará a biologia, uma vez que agregá-la às considerações morais é estar de acordo com a cumulatividade da ética.
2 – Dizem respeito ao indivíduo porque não há sociedade possível, em termos sustentáveis, que negue o indivíduo ou mesmo parte d’ele mesmo.
John Leslie Mackie, um autor que tenho gostado bastante e sobre o qual escreverei em breve aqui no Ano Zero, defende a chamada “Subjetividade de Valores”, uma perspectiva que nega a existência de valores morais absolutos, em termos metafísicos (como poderia querer Immanuel Kant), mas sem negar a objetividade de julgamentos (que ele diz existir em função de “Padrões Avaliativos”), e nesse ínterim acaba mostrando que julgamentos objetivos podem ser totalmente arbitrários.
Porém, segundo Mackie, os melhores julgamentos que possam existir não são meramente arbitrários, mas parcialmente, uma vez que devem considerar o sujeito a ser julgado em suas instâncias mais particulares.
Tome como exemplo um caso de campeonato de cães: um cão que seja premiado em função do gosto do juiz não está sendo justamente premiado, mas um cão que o seja em função da objetividade de sua existência (como sua biologia, levando em consideração sua fisiologia) será melhor julgado e, portanto, haverá mérito de fato no julgamento – o cão, afinal, foi considerado no conjunto de sua obra, e não meramente a partir da ideologia (visão de mundo) do juiz.
Nesse sentido, uma boa defesa ética passa pela consideração plena do indivíduo, o inserindo tal qual ele é em termos biopsicossociais. E boa parte do indivíduo, quer você queira ou não, é sua biologia.
Por outro lado, se tem algo que pode servir muito mais facilmente (e que realmente serve) para atacar minorias são justamente visões éticas. A Sharia e a Lei de Talião são exemplos de éticas aplicadas a determinados contextos que simplesmente destroem o indivíduo em prol de uma visão coletiva sobre o certo e o errado – e, pasme, quando para quem aplica essas éticas é alegado que a biologia fundamenta a existência de homossexuais, eles simplesmente dizem não à biologia, em prol de suas ideologias.
Então não, não dá pra simplesmente anular parte do indivíduo e dizer que se importa com ele. Quem faz isso o está negando, está negando a si mesmo, e isso não é apenas uma ideologia de erros crassos, é também contradição.
Quando aceitarmos nossa condição biopsicossocial, veremos que não há o que sobressaia-se de tal modo que alguma dessas particularidades possa ser chutada para escanteio. A revolução neolítica não veio para transformar nós, primatas, em outros animais, agora tão somente sociais. Dissociar biologia de ética, portanto, é distanciar-se de si mesmo.
Precisamos, por fim, entender duas coisas:
1 – O problema nunca é a coisa em si, mas como a utilizamos. Quando aprendermos isso e deixarmos isso bem fixo em nossas mentes, seremos não apenas mais generosos quanto à interpretação do mundo à nossa volta, veremos também que não é pela possibilidade da biologia ser usada de forma errônea que ela deva ser anulada – e isso serve para qualquer área do conhecimento humano.
2 – As demandas sociais interagem com as ciências naturais. As ciências naturais e as sociais não se excluem mutuamente, portanto quanto maior o conjunto de conhecimentos acerca de um assunto, maior e melhor será a possibilidade de argumentação para transformar essas questões nas instâncias políticas e sociais.
O que eu peço então é simples: sejamos honestos com nós mesmos.
Seja você um justiceiro social, um ultraconservador ou mesmo apenas alguém a quem só interessa uma vida boêmia, bora aceitar que não há nada que possa nos dissociar de nossa própria condição biológica, e que, sim, podemos ser éticos sem mandar longe a nossa biologia.
O biólogo Edward O. Wilson já teve um jarro de água gelada despejado sobre ele numa conferência científica e ouviu mais de uma vez estudantes da Universidade de Harvard berrarem em megafones pela sua demissão – alguns chegando até a levar matracas para fazer barulho em suas palestras. Tudo por ser considerado um dos pioneiros da sociobiologia – a idéia de que é possível compreender o comportamento humano e da sociedade por meio da biologia, tese nada popular entre os cientistas sociais que o acusam de fomentar uma nova versão de darwinismo social (uma mescla de sociologia com biologia que, no século XIX, foi usada para justificar as desigualdades sociais). “O irônico é que a maioria dos cientistas sociais que me criticam cometem os mesmos erros dos darwinistas sociais”, diz Wilson. “Usam a ciência para defender as crenças de uma ideologia política.”
Ele diz que as novas descobertas da neurobiologia sobre a mente humana aproximarão inevitavelmente as ciências humanas das ciências naturais, uma união que ele defende em seu livro Consiliência – A Unidade do Conhecimento (Editora Campus), em que sugere que até a busca de Deus pelo homem não passa de uma herança genética dos nossos antepassados.
Super – Sugerir que até a religião humana está intimamente ligada aos nossos genes não é um excesso de determinismo genético?
Concordo que é difícil as pessoas aceitarem que a predisposição humana para a religião é uma conseqüência normal da evolução genética do cérebro. A ânsia por acreditar em alguma existência transcendental, na imortalidade, faz muito mais sucesso do que a ciência. E esse é um dilema humano: evoluimos geneticamente para aceitar uma verdade e descobrimos outra. Mas temos que ter humildade para reconhecer que nem sempre o que desejamos corresponde à verdade.
E qual seria a origem dessa inclinação para a fé em Deus?
Em primeiro lugar, precisamos concordar que não há nenhuma evidência da existência de uma vida transcendental. Já os estudos sobre o comportamento humano indicam que nossa inclinação para a religião pode ter evoluído do comportamento de submissão animal. Explico: em bandos de macacos rhesus, por exemplo, o macho dominante do grupo caminha firmemente com a cauda e a cabeça erguidas, enquanto os macacos dominados mantêm a cabeça e a cauda baixa, em sinal de respeito ao líder do bando. Estar subordinado a um líder dá a esses animais mais proteção contra os inimigos e garante a eles maior acesso aos alimentos e ao abrigo. Qualquer cientista comportamental que viesse de outro planeta estudar o homem perceberia facilmente a semelhança entre esse comportamento de submissão e a tendência humana de se submeter a um Deus.
Em seu livro Consiliência, você propõe uma fusão das ciências humanas com as ciências naturais. Acha mesmo isso possível?
Não apenas acho possível como considero essa união quase inevitável. Não é aceitável que as ciências humanas permaneçam numa espécie de ilha distante de todas as outras disciplinas, ignorando os avanços da biologia e de suas explicações sobre a natureza humana. As novas descobertas sobre o cérebro e a consciência humana serão decisivas para essa união. E estamos cada vez mais perto de decifrar o cérebro e sua relação com a mente. Quando parte desse mistério for desvendado, ninguém poderá estudar a sociedade e a cultura como antes.
No passado, a união entre as ciências humanas com a biologia foi responsável pelo darwinismo social e pelas teorias racistas. Por que essa união daria certo agora?
É preciso deixar claro que o darwinismo social e as teorias racistas não eram teorias científicas de verdade, nem tinham o objetivo de unir áreas da ciência. Essas teorias tentaram aplicar uma ideologia a um modelo científico. E esse continua sendo o principal problema das ciências humanas: estudar a sociedade com o viés de uma ideologia. E esse erro não foi apenas das teorias que serviram de base para o nazismo. Os regimes totalitários de esquerda também usaram a ciência para legitimar uma idéia de homem e da sociedade ideal. Ou seja: tão pernicioso quanto as teorias do determinismo biológico para justificar as desigualdades sociais foi a adoção do marxismo-leninismo pelos cientistas sociais. A verdadeira ciência não pode ser vinculada aos interesses de nenhuma ideologia política. Isso é a morte da ciência, em qualquer área.
Mas se os genes nos programaram para diversos traços do nosso comportamento, alguém não poderia usar essa tese para justificar uma ideologia?
Poderia. Mas não faria nenhum sentido do ponto de vista científico. A constatação de que, em interação com o ambiente, nossos genes têm um papel fundamental na natureza humana não significa que certo comportamento seja necessariamente bom ou ruim. Você não pode atribuir valor a um traço genético apenas pelo fato de que ele é genético. Seria o mesmo que argumentar que um comportamento é mais ético que outro só porque ele está mais próximo da natureza. Seguindo essa premissa, alguém poderia justificar atrocidades dizendo que a violência está em nossos genes. É claro que a violência faz parte dos homens. Mas a capacidade de escolher também é um dos mais importantes traços humanos.
Poderemos, no futuro, eliminar alguns traços indesejáveis do homem – da mesma forma como erradicaremos algumas doenças genéticas?
Isso será possível e não tenho dúvidas de que, nesse momento, a humanidade terá que fazer sua escolha ética mais importante: devemos continuar vivendo da forma como os nossos genes nos montaram, ou devemos eliminar traços indesejáveis como a agressividade? Eu tenho uma posição firme sobre o assunto: acredito que a natureza humana deve ser preservada. Afinal, uma aparente imperfeição como a inclinação para a violência de um adolescente pode ser a mesma fonte do espírito que leva os exploradores a escalarem montanhas. São faces da mesma moeda. Se não tivermos cuidado, poderemos transformar os seres humanos em animais apáticos, uma espécie de autômato domesticável.
Quando você começou a defender a biodiversidade, essa palavra fazia parte apenas do jargão dos biólogos. Como você avalia as políticas ambientais do Brasil e de outros países?
A maioria dos países, incluindo o Brasil, ainda não se conscientizaram da riqueza que possuem. A verdadeira nova economia não será baseada em computadores, mas no uso das informações que as diversas espécies de vida no planeta carregam dentro de si. Mesmo depois da Eco-92, os economistas continuam fazendo recomendações como se o meio ambiente simplesmente não existisse. Acho que precisamos com urgência incluir o mundo natural e o bem-estar humano entre os indicadores de riqueza dos países. Com esses novos critérios de classificação, o destaque do Brasil seria ainda maior. Pelo menos enquanto conseguir preservar suas reservas de florestas tropicais .