Antíteses sem Teses: o milagre prometido pelos inimigos do “conteudismo”
A retórica do modelo pedagógico
hegemônico no Brasil tem a aparência de um “sacrifício do intelecto”,
mas não por obediência à autoridade de algum dogma, senão para
performaticamente libertar a educação de relações opressoras. Assim,
alega-se, sendo o conhecimento tão universal quanto a atividade de
respirar ou digerir alimentos, carece de sentido a diferença hierárquica
entre os estudantes e o professor em sala de aula, já que sua
superioridade estaria apoiada na premissa falsa de que ele monopoliza o
conteúdo. Tudo isso deveria, portanto, desaparecer para dar espaço ao
livre debate, sem hierarquias já que o professor reconhece e valoriza o
conhecimento que crianças e adolescentes trazem de fora das escolas.
Antes que discutir se de fato estudantes são dotados de saldo cognitivo
comparável aos bens culturais do repertório de professores, ou julgar a
legitimidade de reivindicar a abolição da autoridade nas instituições de
ensino, é necessário compreender com clareza e precisão como se forma o
ponto de vista que declara guerra ao conteúdo.
A prioridade, como é evidente, está na
concepção de que a sociedade capitalista funda uma série de relações
opressoras, não havendo exceção a este princípio no sistema educacional.
Apesar da real possibilidade de se abordar a educação a partir de uma
lógica mais abrangente, que engloba o conjunto de divisões de uma
sociedade, é certo que ela não seria capaz de esgotar questões reais
específicas, como as epistemológicas e psicológicas. O que um tratamento
sociológico de viés tão estreito consegue é apenas desconhecer os
problemas envolvidos na atividade do professor que busca ajudar seus
estudantes em vista do conhecimento. Como simulacro disso, oferecem
metáforas econômicas para ideologizar os “conteúdos”, associadas a
analogias políticas para dar um sentido dramático à desigual posição dos
alunos diante do corpo docente.
Já nesta percepção falsa do
conhecimento, se dá o erro fatal. Um vastíssimo arquivo de informações,
extraídas dos livros ou da observação, não se confunde com o que seja
propriamente conhecer, mas é um momento fundamental do processo. Isto
significa que aquilo que aprendemos por pura prática, ou instruídos ao
nível do senso comum, é a “matéria-prima” do que potencialmente se
formará como conhecimento, por meio do estudo e das aulas. Portanto, se
há um caminho de desenvolvimento, seria mais generoso da parte do
professor fornecer o máximo de conteúdo relevante e eficaz para
estimular o avanço do aluno. Tratá-lo como igual em conhecimento é
condená-lo a continuar um nanico intelectual.
Além disso, que existam conhecimentos
estabelecidos, seja isto um mero fetiche ou algo epistemologicamente
justificável, é um fato que jamais impediu o surgimento de novas
perspectivas que se contraponham às tradicionais. Pelo contrário, sem
nenhuma “pedagogia libertadora”, a modernidade teve Bacon, Descartes,
Galileu, Copérnico, Newton, Kant, etc, inclusive um tal de Marx, cuja
obra nem teria existido na ausência das ideias que ele se esforçou por
confrontar. Para problematizar ou criticar, não se dá um comando direto
como adestradores, mas se provoca e desafia com afirmações em disputa no
tema tratado: isto sim é dialética.
Curiosamente, os inimigos do
“conteudismo” parecem se esquecer que a postura aconselhada aos
professores deixa de ser válida no ambiente dos cursos de Pedagogia e
Licenciatura, pois ali sua doutrina deve ser apresentada como conteúdo
que goza da autoridade de conhecimento consagrado, ou sua transmissão se
debilitaria dissolvendo-se em inconclusivas problematizações em torno
dela mesma. Sem a mais rígida hierarquia que divide os que propõem o
modelo pedagógico hegemônico e os obedientes professores militantes, a
missão sócio-política que os mobiliza jamais seria concebível.