quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Crianças narram pânico no Maraca: "Pai, você não falou que era só um jogo?"

Por Fred Gomes, Rio de Janeiro
 


Ficou muito pesado o clima na entrada do Bellini (Foto: Raphael Zarko) 
Pequeno chora na Rua Eurico Rabelo enquanto queria ir para casa (Foto: Fred Gomes / GloboEsporte.com)




Jogo entre Flamengo x Independiente termina em caso de polícia

"É só um jogo". A estratégica frase usada por pais para amenizar o sofrimento dos filhos em derrotas futebolísticas teve o tom alterado na triste noite de quarta-feira, no Maracanã.
Deixou de ser resposta automática para virar pergunta de uma criança de 7 anos: "Pai, mas você não falou que é só um jogo?". O questionamento escancara novas derrotas. Essas mais duras: do estado, do futebol e até do encantamento dos pequenos pelo esporte mais popular do planeta.
O GloboEsporte.com reuniu depoimento de três crianças, todos autorizados pelos pais, e de dois adultos que ficaram assustados e traumatizados com a barbárie ocorrida antes, durante e depois a conquista do Independiente sobre o Flamengo na final da Sul-Americana, no Maracanã.
José de Hollanda, 7 anos (com auxílio e detalhes narrados pelo pai)
A passarela que leva à estação de metrô do Maracanã era um mar de gente e virou um barril de pólvora. A confusão que acontecia na Radial Oeste, onde um homem que atropelou um torcedor tinha o carro depredado e saqueado (veja em vídeo no topo da matéria), teve reflexos na passarela, que fica acima de onde começou a confusão.
Foi muito gás de pimenta e bombas de efeito moral. Policiais e seguranças do metrô fecharam a estação e o tumulto aumentou, pois era corre-corre das pessoas que estavam na passarela e tantas outras que subiam as escadas de acesso à estação para se proteger do caos na Radial Oeste. Muitas pessoas tiveram celulares furtados.
Pequeno chora na Rua Eurico Rabelo enquanto queria ir para casa (Foto: Fred Gomes / GloboEsporte.com)Pequeno chora na Rua Eurico Rabelo enquanto queria ir para casa (Foto: Fred Gomes / GloboEsporte.com)
Pequeno chora na Rua Eurico Rabelo enquanto queria ir para casa (Foto: Fred Gomes / GloboEsporte.com)
A sorte foi que José, com o pai e madrasta, conseguiu entrar na estação após o pai peitar um policial que parecia não se comover com os gritos de "estou com criança, estou criança". A pimenta invadiu com força a estação, onde muitas crianças eram amparadas por adultos em meio às lagrimas e tentando amenizar a ardência na frente dos ventiladores da estação.
Sentado no chão, chorando, sem entender que ardência era aquela que o impedia de abrir os olhos, José falou:
-Arde meus olhos, e ao redor da minha boca. Me ajuda, me ajuda. Meu Deus, não me deixe morrer.
Mais calmo e já dentro do metrô, José fez a pergunta difícil de responder:
-Pai, mas você não falou que é só um jogo?
Bernardo Faria, 11 anos
"Fiquei muito nervoso de acontecer alguma coisa comigo e muito nervoso com as coisas. Foi muita bomba, gás de pimenta. Já tinha acontecido na final da Copa do Brasil, contra o Cruzeiro, mas não tanto. Fiquei muito apavorado.
Eu só voltaria agora em jogos do Carioca ou do Brasileiro, decisão não gostaria. Esses jogos decisivos, finais e em copas internacionais sempre tem essas coisas.
Estávamos na fila, e um cara lá atrás jogou uma garrafa de vidro perto do policial. Ele achou que meu tio tinha jogado e apontou arma para nós e disse que ia atirar. Foi muito chato, agora em jogo decisivo vou pensar duas vezes antes de ir".
Imagens registram cenas de confusão após perda do título do Flamengo na Copa Sul-Americana  
Pedro Migon, 12 anos
"A gente estava na Radial Oeste, aí, chegando perto do Portão F, comecei a sentir um cheiro muito forte de spray de pimenta na minha cara. Ardia muito meu olho, começaram a dar tiro de bala de borracha.
Atravessamos a rua, e eu vi um cara atingido por essas balas nas pernas. Tinha um monte de gente com o rosto ardendo.
Aí de repente olho para o Portão E, e um monte de gente está invadindo com sinalizadores. Me assustou muito. E vai acontecer de novo. Se esses torcedores não forem presos, vai acontecer com certeza".
Marcelo Câmara, 41 anos e que saiu do Recife para ver o jogo
"Estou morando há três anos no Recife e, nesse período, aproveito quando vou ao Rio para fazer o que eu amo: acompanhar o Flamengo. Comprei para o Setor Norte e fui sozinho. Meus amigos não conseguiram ingressos para o mesmo setor, mas conheço o Maracanã.
Tenho mais de 30 anos de estádio, já passei por muito perrengue para entrar, mas nada se compara ao que vivi ontem. Entrei uma hora e meia antes do jogo, quando passei pela entrada E já estava uma correria danada. Quando cheguei na F, o cenário que vi foi de Guerra Civil. Não há como descrever de outra forma.
Ficou muito pesado o clima na entrada do Bellini (Foto: Raphael Zarko)Ficou muito pesado o clima na entrada do Bellini (Foto: Raphael Zarko)
Ficou muito pesado o clima na entrada do Bellini (Foto: Raphael Zarko)
A torcida quebrando tudo, jogando grades no meio da Radial Oeste, e os pouquíssimos policiais completamente perdidos. Batiam em quem passava pela frente. Mulheres, crianças, poxa.
Quando cheguei ao meu acesso, procurei um policial para falar das entradas e, quando fui falar com ele, olhei e vi que vinham dois caveirões. Me lembrou o Tropa de Elite. Jato d'água para cima do povo, gás lacrimogêneo, bala de borracha... Era criança chorando, gente passando mal. Eu passei mal.
Uma final de campeonato, saio de Recife, deixo minha família aqui. Estava confiante, empolgado, mas sinceramente minha vontade era pegar um táxi para o aeroporto, abraçar meus filhos e minha família porque vi uma coisa muito pior acontecendo".
- Você perde o tesão de ver o jogo. Obviamente fiquei até o final, mas não vi todo o jogo até o final, porque existia um pavor.
Juliana Pinho, 24 anos
"Vi basicamente todas as invasões da (entrada) E. Vi a cavalaria chegando depois da terceira invasão. Foi muito triste, era muita gente entrando pelo Bellini, pulando muro. Os indícios de confusão se deram quando subiu o famoso cheiro de gás de pimenta.
A polícia estava totalmente despreparada. Eles deviam conduzir os seguranças (privados) da Sunset, mas estavam perdidos. Jogavam bomba para dispersar a multidão, mas tacavam num local que fazia o povo invadir. Forçava a invasão. Jogavam bombas com pessoas no chão.
O primeiro que estava na frente perto das grades, ainda fora do estádio, era empurrado. A grade caía, e essas pessoas ficavam com o pé preso embaixo da grade. Vi muita gente saindo de maca. Muito triste".
- Vi gente sendo pisoteada, escorada na parede. De tudo quanto é jeito. Lamentável.