Especial Polônia – Os demônios no cinema de Andrzej Wajda
Em uma pesquisa que uniu o cinema de Wajda, a literatura de Dostoiévski e, ainda, a incursão do diretor polonês pelo teatro em uma bem sucedida montagem de 'Os Possessos', Jeffis Carvalho lança novas luzes a essa poderosa adaptação.
Em uma pesquisa que uniu o cinema de Wajda, a literatura de Dostoiévski e, ainda, a incursão do diretor polonês pelo teatro em uma bem sucedida montagem de 'Os Possessos', Jeffis Carvalho lança novas luzes a essa poderosa adaptação.
Estado da Arte
24 Novembro 2017 | 15h07
Por Jeffis Carvalho
Ora, andava ali pastando no monte uma grande manada de porcos; rogaram-lhe, pois que lhes permitisse entrar neles, e lho permitiu. E tendo os demônios saído do homem, entraram nos porcos; e a manada precipitou-se pelo despenhadeiro no lago, e afogou-se. Lucas 8:32-33
Os créditos do filme correm sobre imagens de uma paisagem gelada, envolta em névoa. Alguém caminha rapidamente em meio à floresta. É um homem de pouco mais de 30 anos. Ele arrasta algo e, ao chegar ao que parece ser o seu destino, passa a cavar desesperadamente. No buraco aberto, joga o que arrastou até ali e o enterra. Corta para detalhes de seus pés amassando a terra fofa sobre o buraco fechado. A música, acentuadamente tensa, pontua toda a cena. O homem é o tipógrafo Ivan Chatov (Jerzi Radziwilowicz) e o que ele acaba de enterrar é uma prensa.
A sequência abre Os Possessos, filme de 1988, que Andrzej Wajda – o grande cineasta polonês morto aos 90 anos, em 2016 – adapta do romance Os Demônios, de Fiódor Dostoiévski. Estamos na Rússia, em 1870, e Chatov faz parte um grupo de jovens revolucionários que quer arruinar o sistema com violência. Eles acham que essa é a única chance de reformar a antiga sociedade russa. Chatov é o responsável pela impressão dos panfletos e outros materiais que proclamam uma nova ordem para a decadente Rússia aristocrática.
Se num primeiro momento acreditamos que ele enterrou a prensa por medidas de segurança, logo percebemos que sua intenção é bem outra. Chatov está de saída do grupo e esconde a prensa para evitar que ela seja usada. A tensão da sequência de abertura é um primor de economia narrativa. Wajda nos faz cúmplices do medo de Chatov das “verdadeiras intenções” de Peter (Piotr, em russo, interpretado por Jean-Philippe Scoffey) e Stavrógin (Lambert Wilson) – o principal mentor do grupo. A câmera segue Chatov, da cena inicial na floresta, para uma reunião com Peter Stepanovich Verkhovensky – onde encontra o pai deste, Stepan Trofimovich (Omar Sharif); para o apartamento de Kirillov (Laurent Malet); para a estação de trem onde ele espera Nikolai Stavrógin apenas para confrontá-lo. E, finalmente, para a igreja local. A mise en scène de Wajda não só alinha o espectador com Chatov, mas também o prefigura como protagonista de Os Possessos. Ao mesmo tempo nos revela o mal daqueles “possuídos” por Stavrógin, porque Chatov deixa cada uma dessas cenas no caminho e segue para seu próximo destino, enquanto a câmera e o espectador permanecemos com os personagens no círculo secreto, testemunhando seus conflitos. Esta técnica – bem como o leitmotiv musical severo e ameaçador que pontua todo o do filme – vai revelando pouco a pouco a natureza diabólica dos antagonistas na novela de Dostoiévski.
Os Demônios foi escrito por Fiodor Dostoiévski em 1872. A obra foi motivada por um episódio verídico: o assassinato do estudante I. I Ivanov pelo grupo niilista liderado por S. G Nietcháiev em 1869. O livro é uma alegoria das consequências potencialmente catastróficas do niilismo político e moral que surge na Rússia na década de 1860. No romance, Dostoiévski cria uma cidade fictícia e narra a sua descida ao caos à medida que se torna o ponto focal de uma tentativa de revolução, orquestrada pelo conspirador Piotr Verkhovensky, para favorecer a misteriosa figura aristocrática de Nikolai Stavrogin, que domina o livro exercendo uma influência extraordinária sobre quase todos os outros personagens. Caracterizada no personagem de Stepan Trofimovich Verkhovensky (que é o pai de Piotr Verkhovensky e professor de infância de Nikolai Stavrogin), a geração idealista que sofre a influência ocidental da década de 1840 atua como progenitora inconsciente e é cúmplice indefesa das forças “demoníacas” que tomam posse da cidade.
“Demônios” não se refere aos diabólicos e “possessos” personagens do livro – indivíduos que atuam de várias maneiras imorais ou criminais –, mas, sim, às ideias que os possuem: forças não-materiais, mas vivas que subordinam a consciência individual (e coletiva), distorcendo-a e impelindo-a para uma catástrofe. De acordo com o tradutor Richard Pevear, os demônios são “essa legião de ismos que vieram para a Rússia do Ocidente: idealismo, racionalismo, empirismo, materialismo, utilitarismo, positivismo, socialismo, anarquismo, niilismo e, subjacentes a todos, ateísmo”. O contra-ideal para os demônios (expresso no romance através do personagem de Ivan Chatov) é o de uma cultura autenticamente russa que se destaca na espiritualidade e na fé inerentes ao povo.
Como observou Zbigniew Bienkowski, poeta, tradutor e crítico literário polonês, ao criticar severamente o filme de Wajda, “cada um dos romances de Dostoiévski envolve um drama excelente, consistente, intriga fascinante, uma riqueza de emoções variadas. Parece que nada precisa ser feito, só extrair e filmar”. E aí é dado o maior desafio para Wajda, porque como lembra Bienkowski, “todas as intrigas, paixões e personagens de Dostoiévski vivem vidas duplas: uma vida de realidade e uma vida de idéias. Esta literatura, tão firmemente enraizada em fatos reais e questões urgentes de sua era, tão física para ser brutal, tão real como vulgar, está saturada de pensamentos, idéias e reflexões sobre o mundo, Deus, religião, sociedade, condição humana, a alma humana (…) certamente, qualquer diretor ambicioso sonha em filmar Dostoíévski. Mas o potencial do filme não é o mesmo que o potencial da literatura. Ou talvez estejamos todos cegos pela arrogância da tecnologia? Se não devemos trair e banalizar Dostoiévski, teremos que filmar também sua filosofia, sua metafísica, sua ética.”
Mas, claro, como cineasta, Wajda não tem a pretensão de transpor o romance em filme, mas sim adaptá-lo para uma outra linguagem e, ao fazê-lo, manter o seu espírito, a sua abordagem crítica, para preservar a essência de sua reflexão. Ao mesmo tempo, parece que Wajda leu o filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin e seu estudo sobre Dostoiévski. Como lembra Cary Emerson, professora da Universidade de Princeton, Bakhtin afirma que “os estudiosos da literatura, deslumbrados com as contribuições de Dostoiévski para a teologia, a filosofia da moral, a psicologia e o nacionalismo russo, não foram capazes de apreciar sua contribuição, ainda mais importante, para arte literária. Bakhtin pretende corrigir essa omissão.(…) Para ele, ao examinar os graus de consciência no terreno da estética, Dostoiévski criou – ou descobriu, talvez – a polifonia”. Com essa polifonia, explica Bakhtin, o narrador onipresente, senhor todo poderoso da literatura, cede espaço para uma proliferação de vozes – e Dostoiévski recria, então, o romance – o que confere à narrativa variados pontos de vista.
A polifonia de Os Demônios não é um conceito que se perde na versão cinematográfica. Pelo contrário, Wajda faz dela o seu principal recurso narrativo e estético. Por meio da constante movimentação de um lugar para o outro – o que Bakhtin chama de “aceleração catastrófica da ação” – e diálogo incessante entre os personagens, o cineasta demonstra sua compreensão completa do texto de Dostoiévski. Diz Wajda:
A prosa de Dostoiévski é teatral, seus personagens falam incessantemente, impulsionados pelo desejo de organizar suas relações com os outros e com o mundo por meio de pensamentos expressos em palavras. O palco é o lugar onde é dito. Qualquer pessoa que permita que os personagens de Dostoiévski falem, mesmo que ele não faça nenhuma tentativa de encenar as idéias do diálogo, tem uma chance justa de se aproximar da essência das questões apresentadas nas novelas desse escritor cruelmente talentoso.
Wajda sabe muito bem disso, afinal, no início da década de 1970, ele mesmo fez uma elogiada adaptação de Os Demônios para o Stari Teatr, de Cracóvia. A sua montagem foi continuamente encenada no Teatro Nacional em Cracóvia por 13 anos, com sessões sempre esgotadas. Passados 40 anos desde que essa adaptação mudou a cena teatral polonesa, em 2011, a ousadia de Wajda foi condensada no documentário The Possessed Years Later, produzido pela Culture.pl. A grande pergunta que o documentário transforma em mote é “como aconteceu que uma jogada explicitamente política superou os censores da ditadura comunista em 1971?”
Wajda diz:
– Eu entendi que, se eu tivesse permissão para organizar Os Possessos, eu poderia fazer qualquer coisa.
E ele fez. O diretor também criou o conjunto memorável do Stari Teatr – um palco ligeiramente inclinado. E sobre ele, narra o documentário, Wajda cenografou o palco “mergulhado em lama na terra arrasada, com um céu cinzento perturbador, sons violentos de guitarra, gemidos e lamentos provenientes dos alto-falantes, com sombras encapuzadas de pessoas mudando as decorações e adereços no ritmo da narrativa.”
No documentário, infelizmente não acessível ao público brasileiro, o diretor conta que interpretar os personagens de Dostoiévski provou ser um verdadeiro desafio para os atores, com ensaios caóticos, discussões desafiadoras e comparações com a adaptação de Albert Camus. O grande escritor franco-argelino, Nobel de Literatura em 1957, estreou a sua adaptação de Os Demônios em 1959, no Théâtre Antoine, em Paris. Camus declarou, então, que descobriu o romance aos vinte anos, e ele teve uma influência notável sobre o trabalho do escritor francês: “O choque que recebi continua o mesmo após vinte anos.”
Retomo Wajda:
– Os Possessos tornou-se parte de nossa vida. Algo aconteceu, em que todos descobriram um demônio dentro de cada um. Pouco depois da estreia, alguém me perguntou: ‘como você conseguiu criar esse medo em seus olhos?’ Como eles [os atores] conheciam-me, nós trabalhamos juntos antes, nós éramos amigos, eles sabiam que eu estava exigindo algo deles, mas que não era meu capricho, eu estava exigindo algo em nome de Dostoiévski. Nós agarramos a alma russa pela garganta, e essa performance permaneceu em nós não só pelo sucesso que foi, mas o conflito interno que causou em nós – porque dissemos mais sobre nós do que queríamos, nos abrimos diante da audiência e não ficamos envergonhados de mostrar o que Dostoiévski nos ajudou a descobrir sobre nós.
Até a sua versão para o cinema, Os Possessos fez, na definição de Wajda, uma longa, escura e atormentada viagem de 1964 a 1984. “Parecia-me que eu sabia muito sobre esse trabalho”, diz Wajda, “mais do que sobre outras novelas que eu transferi para a tela. Acima de tudo – essa foi a principal fonte do impacto no palco do The Possessed – eu mesmo o adaptei a uma peça de teatro. Então eu não tinha dúvidas de que eu seria capaz de fazê-lo novamente e The Possessed assumiria o comando na tela para impactar o público.”
Na tela, com a ajuda do roteirista Jean-Calude Carrière, Wajda captura a teatralidade de Dostoiévski por meio de sua ênfase nas tensões do confronto verbal. Na montagem, as tomadas são sincopadas com o diálogo, e os primeiros planos focam nas características faciais expressivas de cada personagem. Uma sequência particularmente reveladora dessa expressividade é a de Stavrogin visitando Chatov com a premissa de adverti-lo sobre o plano do grupo para assassiná-lo.
O confronto é especialmente interessante nos textos de Dostoiévski e na adaptação de Wajda e Carrière, pois reforça as atitudes radicalmente diferentes dos dois personagens – um como a inspiração fria do grupo e o outro fundido com um apaixonado desejo de escapar dele. Enquanto as sequências de Chatov oferecem um vislumbre das “verdadeiras intenções” dos conspiradores, as sequências de Stavrógin e seus interlocutores intensificam sua polifonia diabólica.
Também no tratamento puramente estético que dá ao filme, Wajda transmite toda essa tensão diabólica, e dialógica, de Os Demônios . Ex-aluno de pintura na Academia de Belas Artes da Polônia, Wajda sabe trabalhar dramaticamente a iluminação – ela é de alto contraste das cores para retratar visualmente a luta interna na mente de seus personagens – traduzindo em imagens a proposta literária de Dostoiévski. Assim, as locações relativas à “ordem estabelecida” (a casa de Stepan Trofimovich e a estação de polícia) são predominantemente sombreadas em azul; já o reino da sociedade secreta (suas casas e lugares de reunião, geralmente iluminados pelo fogo, como os personagens tendem a se encontrar na noite) é freqüentemente apresentado em tonalidades laranjas e vermelhas brilhantes.
Da mesma forma que Dostoiévski permite que o diálogo permeie “em cada palavra do romance, tornando-o dupla-voz, em cada gesto, todo movimento imitado no rosto do herói, tornando-o convulsivo e angustiado”, como destaca Bakhtin, assim também Wajda aproveita o potencial do filme para retratar os conflitos internos de seus personagens e até mesmo da sua época.
No capítulo Três Possessos, de seu livro O Homem Revoltado, Albert Camus escreve que “destruir tudo implica construir sem fundações; as paredes têm de ser mantidas de pé pela força dos próprios braços. Aquele que rejeita todo o passado, sem dele preservar nada daquilo que poderia servir para revigorar a revolução, está condenado a só encontrar justificação no futuro e, enquanto espera, encarrega a polícia de justificar o provisório”. Como um artista que viveu sob dois grandes totalitarismos, Andrzej Wajda talvez seja o artista do século XX que mais entendeu o perigo desse provisório e o seu demônio que faz com que ninguém acredite nele.
Jeffis Carvalho é jornalista, roteirista, cinéfilo e consultor de comunicação.