A colonização dos cursos de humanas
Há um
modo de pensar típico da sociologia, mas também familiar para cientistas
políticos, historiadores e antropólogos, que é partir da premissa de
que o conjunto da sociedade está ajustado como um sistema, postulando
sua unidade dotada de lógica própria apesar de suas múltiplas diferenças
internas. Com esse procedimento, a lógica específica de cada setor da
sociedade é “dissolvida” numa forma global que estabelece a dinâmica das
conexões entre os vários setores, entendidos assim como partes
interdependentes.
Mas a
“tal” sociedade em sua totalidade jamais está acessível por meio da
experiência de nenhum de seus cidadãos, por obviamente tratar-se de uma
abstração. E o problema está em que a forma adequada de tal abstração é
a questão que divide os maiores sociólogos e as principais vertentes da
área. No entanto, ao ser disseminada fora do ambiente das
controvérsias de que é parte, uma doutrina sociológica qualquer pode ser
facilmente “hipostasiada” e adquirir o status de revelação divina, já
que a recepção acrítica cria a ilusão da infalibilidade do conteúdo
adquirido de “segunda ou terceira mão”. Esse é o caso, muitas vezes, de
cursos de Pedagogia, Psicologia, Jornalismo e até Letras, entre outros,
dependendo da instituição.
E foi
assim que o esquema exposto no prefácio à crítica da economia política,
de Marx, tornou-se dogma teórico e sobretudo prático na transformação da
finalidade científica e técnica de cada área em um único propósito de
natureza política para todas elas. Com o jargão da infra-estrutura e da
super-estrutura, a tese é que os modos e relações de produção, a
economia, são a base que determina tudo o mais na sociedade. Daí que o
conhecimento, o ensino, o estudo, a produção científica e cultural em
geral, ou o exercício de qualquer profissão, são avaliados segundo o
critério da relação destas práticas com a configuração do poder em cada
sociedade. O resultado óbvio disso é que qualquer área profissional e
científica que não oferece algo de útil para reforçar certos discursos
ideológicos e agendas políticas, é criminalizada por aquilo mesmo que
tradicionalmente a define.
Além de
sua hegemonia teórica, a peculiaridade marxista na ênfase da praxis
revolucionária reduz o ensino, a formação e a pesquisa a ferramentas ou
até armas da ação : deve-se transformar o mundo, sem isso de nada vale
interpretá-lo. Um professor que tenha algum “conteúdo”, por humilde que
seja, e o impulso de “transmitir “ isso aos alunos, é um fascista, já
que devia estar integralmente concentrado em sua única missão de incutir
slogans de propaganda, tal qual luta de classes, desigualdade,
opressores e oprimidos, justiça social, nos aspirantes a “ocupadores” de
qualquer coisa. Um artista, escritor, sacerdote religioso ou
jornalista, todos igualmente condenados ao trabalho forçado, reproduzem o
mesmo proselitismo. Mas nada poderia ser mais deformada do que a
essência de uma ciência, quando esta é reduzida à sua (suposta) posição
hierárquica na sociedade, com todos os fatores culturais, políticos e
econômicos, que isto envolve. Tal abordagem pode ter alguma validade
para o sociólogo ou antropólogo que tem na comunidade científica seu
objeto de pesquisa. E ainda que o cientista social denuncie interesses
políticos e econômicos reverberando em vários aspectos da atividade
científica, seria surreal desejar reprogramar as práticas e finalidades
que orientam uma comunidade, para adequá-la a uma lógica extrínseca a
ela e cumprir função social mais justa. Se no discurso isto soa como
condenação moral, na prática se dá como totalitarismo, seja no ambiente
acadêmico ou profissional.
Deve-se
ressaltar que o marxismo jamais atingiu o status de ciência, nem mesmo
em suas versões mais sofisticadas, consistindo o esquematismo caricato
das noções aqui mencionadas em grosseira vulgarização, uma concepção de
causalidade mecânica da qual a dialética está muito distante. Se
estudante, professor ou profissional, tem seu princípio e motivação na
ciência a que se dedica e na excelência com que realiza seu ofício, não
pode anular sua vocação como sacrifício por uma causa política que
capitalizará para si o produto de sua atuação. Pedagogos, psicólogos,
jornalistas, todos indiscutivelmente possuem muitos motivos para
dialogar e interagir com as Ciências Sociais. Mas daí não se pode exigir
que o modelo de formação e prática daquelas áreas seja determinado por
abstrações sociológicas.
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