terça-feira, 26 de setembro de 2017

A colonização dos cursos de humanas


A colonização dos cursos de humanas

Há um modo de pensar típico da sociologia, mas também familiar para cientistas políticos, historiadores e antropólogos, que é partir da premissa de que o conjunto da sociedade está ajustado como um sistema, postulando sua unidade dotada de lógica própria apesar de suas múltiplas diferenças internas. Com esse procedimento, a lógica específica de cada setor da sociedade é “dissolvida” numa forma global que estabelece a dinâmica das conexões entre os vários setores, entendidos assim como partes interdependentes.
Mas a “tal” sociedade em sua totalidade jamais está acessível por meio da experiência de nenhum de seus cidadãos, por obviamente tratar-se de uma abstração.  E o problema está em que a forma adequada de tal abstração é a questão que divide os maiores sociólogos e as principais vertentes da área.  No entanto, ao ser disseminada fora do ambiente das controvérsias de que é parte, uma doutrina sociológica qualquer pode ser facilmente “hipostasiada” e adquirir o status de revelação divina, já que a recepção acrítica cria a ilusão da infalibilidade do conteúdo adquirido de “segunda ou terceira mão”. Esse é o caso, muitas vezes, de cursos de Pedagogia, Psicologia, Jornalismo e até Letras, entre outros, dependendo da instituição.  
E foi assim que o esquema exposto no prefácio à crítica da economia política, de Marx, tornou-se dogma teórico e sobretudo prático na transformação da finalidade científica e técnica de cada área em um único propósito de natureza política para todas elas. Com o jargão da infra-estrutura e da super-estrutura, a tese é que os modos e relações de produção, a economia, são a base que determina tudo o mais na sociedade. Daí que o conhecimento, o ensino, o estudo, a produção científica e cultural em geral, ou o exercício de qualquer profissão, são avaliados segundo o critério da relação destas práticas com a configuração do poder em cada sociedade. O resultado óbvio disso é que qualquer área profissional e científica que não oferece algo de útil para reforçar certos discursos ideológicos e agendas políticas, é criminalizada por aquilo mesmo que tradicionalmente a define.
Além de sua hegemonia teórica, a peculiaridade marxista na ênfase da praxis revolucionária reduz o ensino, a formação e a pesquisa a ferramentas ou até armas da ação : deve-se transformar o mundo, sem isso de nada vale interpretá-lo. Um professor que tenha  algum “conteúdo”, por humilde que seja, e o impulso de “transmitir “ isso aos alunos, é um fascista, já que devia estar integralmente concentrado em sua única missão de incutir slogans de propaganda, tal qual luta de classes, desigualdade, opressores e oprimidos, justiça social, nos aspirantes a “ocupadores” de qualquer coisa. Um artista, escritor, sacerdote religioso ou jornalista, todos igualmente condenados ao trabalho forçado, reproduzem o mesmo proselitismo.  Mas nada poderia ser mais deformada do que a essência de uma ciência, quando esta é reduzida à sua (suposta) posição hierárquica na sociedade, com todos os fatores culturais, políticos e econômicos, que isto envolve. Tal  abordagem pode ter alguma validade para o sociólogo ou antropólogo que tem na comunidade científica seu objeto de pesquisa. E ainda que o cientista social denuncie interesses políticos e econômicos reverberando em vários aspectos da atividade científica, seria surreal desejar reprogramar as práticas e finalidades que orientam uma comunidade, para adequá-la a uma lógica extrínseca a ela e cumprir função social mais justa. Se no discurso isto soa como condenação moral, na prática se dá como totalitarismo, seja no ambiente acadêmico ou profissional.
Deve-se ressaltar que o marxismo jamais atingiu o status de ciência, nem mesmo em suas versões mais sofisticadas, consistindo o esquematismo caricato das noções aqui mencionadas em grosseira vulgarização, uma concepção de causalidade mecânica da qual a dialética está muito distante. Se estudante, professor ou profissional, tem seu princípio e motivação na ciência a que se dedica e na excelência com que realiza seu ofício, não pode anular sua vocação como sacrifício por uma causa política que capitalizará para si o produto de sua atuação. Pedagogos, psicólogos, jornalistas, todos indiscutivelmente possuem muitos motivos para dialogar e interagir com as Ciências Sociais. Mas daí não se pode exigir que o modelo de formação e prática daquelas áreas seja determinado por abstrações sociológicas.

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