Gustavo Lima mora no Rio de Janeiro e é empreendedor, já teve três empresas startup e vai nos contar um pouco das dificuldades de se ter negócios no Brasil. Um ambiente acolhedor para empresários é fundamental para uma economia próspera, porque permite a proliferação de novos negócios que geram emprego e renda para os trabalhadores. Entender por que não é o nosso caso no Brasil é, portanto, de importância central.
Vamos começar essa entrevista de forma mais aberta. Conta pra gente um pouco da sua história como empreendedor. Você já teve outros negócios, hoje desenvolve um aplicativo para consultórios. Como foi sua trajetória até aqui?
Antes do Doutore, eu já tive duas startups. É interessante que quando eu digo isso a amigos americanos eles falam: “que legal, ele já faliu duas empresas, deve ter bastante experiência”. Agora quando eu digo a mesma coisa a amigos brasileiros eles falam: “ele já faliu duas empresas, coitado deve estar passando fome”.
Tudo começou com um vídeo do TED Talksfalando sobre consumo colaborativo, que é você usar plataformas tecnológicas para alugar/trocar bens e serviços. É uma forma de otimização de bens e serviços, e esse conceito de consumo colaborativo me encantou muito.
A minha primeira empresa se chamava Carro Com Vc e era uma plataforma de aluguel de carros entre pessoas físicas. Ou seja, permitia que você ganhasse dinheiro alugando seu carro para o vizinho, permitindo também que pessoas que precisam de um automóvel eventualmente alugassem um carro de forma prática, e não tivessem que gastar dinheiro comprando um carro que ficaria a maior parte do tempo parado.
Infelizmente devido à grande burocracia do sistema de seguro de automóveis no Brasil, nós não conseguimos lançar o produto e depois de um ano fechamos a empresa.
Minha segunda empresa foi o Carona Com Vc, que na verdade começou como um projeto de marketing para divulgar o Carro Com Vc. Só que o Carona acabou ganhando muitos usuários muito rápido e nós vimos uma oportunidade de mercado nele.
Foi muito difícil construir um modelo de negócios que fosse rentável, até porque, carona remunerada no Brasil é ilegal até hoje. E nós não tínhamos o arsenal de advogados que o Uber tem. [risos]
Hoje estamos com o Doutore , que é um sistema de gestão para consultórios e clínicas. E graças a Deus estamos crescendo bem, com um bom produto e clientes e satisfeitos.
Nessas três empresas, eu trabalhei com o mesmo sócio. A gente se dá muito bem e trabalha muito bem juntos. Acho que essa foi uma das maiores sortes que eu tive porque briga entre sócios é um dos principais motivos de quebrar startups.
Nessa sua primeira startup, que tipo de burocracia você encontrou que impediu o funcionamento da empresa?
O grande problema burocrático que impediu o funcionamento do Carro Com Vc foi relativo ao seguro dos automóveis.
Eu precisava de um seguro muito específico que não existe no mercado hoje. Que assegurasse o automóvel somente durante o período do aluguel, que era um período muito curto de um dia, ou às vezes algumas horas.
E a SUSEP 1 exige uma burocracia chata para a criação de cada apólice de seguro. Tanto é que as empresas de aluguel de carro assumem o risco e criam um seguro próprio.
Assim, quando a gente conversava com os possíveis parceiros, eles não sabiam como viabilizar operacionalmente esse processo.
Pensando em burocracia, uma outra coisa muito chata que aconteceu foi em relação ao nosso alvará. Nós éramos uma empresa de tecnologia, na incubadora de empresas da PUC-Rio, e o nosso alvará foi negado! E o pior, ninguém sabia dizer o motivo. Aí nós ficamos seis meses para conseguir liberar o alvará.
A obtenção de alvarás no Brasil é realmente um dos grandes entraves ao empreendedor. De todas as dificuldades que ele enfrenta, qual você acha que é a pior? A que mais afeta negativamente seu negócio?
Nós sabemos muito bem que o Brasil é um ambiente inóspito ao empreendedorismo. Muita burrocracia, altos impostos, muitos empreendedores não têm conhecimentos básicos de gestão. Mas eu acho que o maior problema de todos é o acesso ao crédito.
Para se ter um ambiente de negócios competitivo, é necessário ser fácil de se criar e de se fechar uma empresa. E toda empresa depende de capital. No Brasil, parece que os únicos que têm acesso a capital para investimento são as grandes empresas. Assim você limita a competição e também a inovação, a qual normalmente surge nas médias e pequenas empresas.
O pior é que muitos empreendedores acreditam que esse é um problema a ser resolvido pelo Estado. Quando minha empresa estava na incubadora de empresas da PUC-Rio, todas as empresas lá gastavam uma boa parte do tempo fazendo editais para conseguir dinheiro público ( CNPQ , FINEP ,FAPERJ , etc). Consegui investimento de investidores anjos e venture capital , o que são práticas supernormais no Vale do Silício , e algo raríssimo no Brasil.
Você acredita que haja muita insegurança jurídica no Brasil também? Você pensa em investir fora futuramente?
Como existem muitas leis, existe brecha para várias formas diferente de interpretá-las. Vide obloqueio do Whatsapp que prejudicou milhões de brasileiros por ordem de um único juiz, o qual muito provavelmente não entende nada de tecnologia. Isso, ao meu ver, é um exemplo claro de “insegurança jurídica”.
E sim, eu já invisto fora do Brasil.
uber
Você disse que carona remunerada no Brasil hoje é ilegal. Você não considera que o Uber conseguiu provar o contrário? Ele opera em diversas cidades, e há decisões jurídicas favoráveis à sua existência.
Carona paga hoje no Brasil continua sendo ilegal, mas fiscalizar isso é muito difícil.
O Uber se coloca como: um outro tipo de serviço. Diz que não existe regulação específica para ele. Assim ele consegue operar e vai ganhando apoio popular e apoio dos juristas.
Existe uma startup franco-inglesa que chegou recentemente no Brasil, ela se chama BlablaCar . Essa, sim, é um aplicativo de caronas intermunicipais. E eu estou muito esperançoso para que o BlablaCar dê certo e consiga mudar essa lei idiota.
E como é a relação do Estado com pequenas empresas? Você acha que as regulamentações estatais no geral ajudam ou atrapalham a empreendimentos?
Qualquer coisa que “regula”, por definição, limita e atrapalha o empreendimento. Obviamente existem algumas regulamentações que são necessárias, mas “regular” deveria ser a exceção, e não a regra.
No Doutore, por exemplo, que é um sistema de gestão de consultórios, o Conselho Federal de Medicina possui uma lista de regras que todos os sistemas de prontuário eletrônico devem seguir para serem certificados. Esse mercado é muito competitivo, existem muitos sistemas. Sabe quantos são certificados? Nenhum! São regras absurdas que complicariam o usuário (o médico), e tenho absoluta certeza de que [um sistema] não teria um único cliente se seguisse essas regras.
Ao menos a certificação do CFM é opcional. Tenho amigos que possuem franquias que vendem chocolate e frozen yogurt. Os dois me dizem que as regulamentações de estoque são tão grandes e tão específicas que é impossível seguir todas. Ou seja, eles são sempre multados, ou subornados pelos fiscais. Quem paga esse custo é, obviamente, o consumidor.
Vocês deveriam fazer um artigo sobre isso, citando as regulamentações mais absurdas do tipo: não poder deixar sal na mesa , padrão brasileiro de tomada , proibição de porte de faca , etc.
Eu diria que 99% das regulamentações poderiam ser extintas, mas existe aquele 1% que tem o seu valor.
No começo você disse sobre a diferença de mentalidade entre o brasileiro e o americano em relação ao empresário. O americano parece ver com mais naturalidade que empresas nem sempre deem certo, e que o bom empreendedor deve continuar tentando. Você acha que isso acontece porque no Brasil as pessoas não têm cultura de empreendedor? Pelo menos não quanto a negócio formal.
Acho que, em parte, é pela falta de uma cultura empreendedora madura, sim. Mas, acredito eu, que o principal motivo seja pela dificuldade de empreender no Brasil.
Como abrir, tentar manter, conseguir capital e até mesmo fechar uma empresa no Brasil é muito difícil. Esse ambiente nosso inóspito diminui muito o incentivo do empreendedor em série. Assim, o empreendedor iniciante fica frustrado ao falhar e não tenta novamente. E esse é um sério problema, por que para aumentar as chances de sucesso em um empreendimento, requer que o empreendedor tenha experiência. E ele só vai conseguir essa experiência depois de tentar algumas vezes.

Notas:

  1. Autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda responsável pelo controle e fiscalização dos mercados de seguro, previdência privada aberta, capitalização e resseguro. (N. do E.)