terça-feira, 3 de outubro de 2017

Por que a Espanha deveria deixar a Catalunha decidir

Por que a Espanha deveria deixar a Catalunha decidir
O princípio básico da liberdade é a auto-determinação
Localizada no nordeste da Espanha, a Catalunha é uma província cujo histórico é complexo: historicamente, ela sempre foi seu próprio principado; porém, e ao mesmo tempo, ela tem sido alternadamente conquistada e reivindicada tanto pela França quanto pela Espanha.
Apesar de todos os esforços para erradicá-lo, a província ainda mantém um idioma próprio. E também possui uma identidade nacional própria. Assim como também possui representantes políticos próprios. De acordo com a mais recente constituição espanhola, a Catalunha possui um certo nível de autonomia em relação ao governo espanhol.
E agora ela quer se separar da Espanha.
Aliás, o termo "agora" talvez seja um tanto enganoso. A Catalunha tem se mostrado contrária ao domínio espanhol já faz um bom tempo, sendo que o movimento de independência política começou formalmente em 1922. O movimento rapidamente ganhou tração e conseguiu fazer com que a região se tornasse politicamente autônoma em relação ao governo espanhol. Mas isso foi antes de estourar a Guerra Civil espanhola, em 1936. Após a guerra civil, o ditador e general Francisco Franco prontamente aboliu a autonomia, em 1939.
Já o atual movimento de independência da Catalunha começou em 2006, com a Catalunha readquirindo uma nova autonomia dentro da Espanha. Desde então, várias e notórias figuras públicas catalãs passaram a fazer campanha ostensiva por um estado independente, e vários referendos simbólicos já foram feitos sobre o tópico, todos eles resultando em um resoluto 'sim' em favor da secessão.
Por causa deste forte apoio, a província da Catalunha marcou um referendo, agora formal e decisivo, para decidir sua independência em relação à Espanha. O referendo será dia 1º de outubro (próximo domingo).
Mas o governo espanhol não está gostando nada disso.
A Espanha responde
O governo espanhol declarou que o referendo é ilegal. Na quarta-feira passada, dia 20 de setembro, soldados da Guarda Civil espanhola deram batidas em vários órgãos do governo catalão e prenderam 14 ativistas, políticos e funcionários pró-independência, vários deles do alto escalão. Também na quarta-feira, o ministro do interior da Espanha anunciou que a Guarda Civil e a polícia nacional estarão em massa na Catalunha para impedir a realização do referendo, o que aumentou enormemente as tensões.
Em uma entrevista à Bloomberg, o ministro das relações exteriores da Espanha, Alfonso Dastis, declarou: "Essas pessoas [separatistas] estão, na prática, tomando atitudes nazistas, pois estão colocando cartazes com os rostos de todos os prefeitos que não estão querendo participar desta farsa." E prosseguiu dizendo que "Um referendo não é a mesma coisa que democracia. O general Franco organizou dois referendos."
Perceba que a tática é sempre a mesma, em qualquer país: quem não concorda com você é um nazista. No entanto, o senhor Dastis está errado: um referendo é exatamente a mesma coisa que democracia. Não faz sentido defender eleições majoritárias, mas se opor a referendos. Quem defende um tem necessariamente de defender o outro.
E, por mais que eu seja um cético em relação à democracia e à escolha de um governo pela maioria, é fato é que os cidadãos da Catalunha estão tendendo decidir, de maneira estritamente pacífica e não-violenta, se quere ser um estado independente. Já o governo espanhol está violentamente interferindo nesta tomada de decisão. Isso sim é anti-democrático, e não o referendo em si.
Escalada de tensões
É perfeitamente possível entender por que a Espanha quer manter a Catalunha. Trata-se de uma região extremamente industrializada, a qual, apesar de seu tamanho relativamente pequeno, possui o maior PIB dentre todas as províncias espanholas. Logo, é compreensível que o governo espanhol não queira abrir mão deste cofre, especialmente quando se considera quanto a economia espanhola ainda continua combalida.
No entanto, criminalizar o direito de auto-determinação não é uma maneira de manter a Catalunha.
Mesmo porque um referendo sobre a independência da Catalunha nem sequer é uma garantia de que haverá secessão em relação à Espanha. Pesquisas feitas dois meses atrás mostraram que 49,4% dos catalães eram contra a independência. Dito isso, quanto mais tirânico e opressivo o governo espanhol se comportar em relação aos catalães, maior a probabilidade de eles quererem a independência. As ações do governo espanhol já geraram violentos protestos em Barcelona, a capital da Catalunha. Carles Puigdemont, o presidente da generalidade da Catalunha, rotulou os ataques de 'violação aos direitos humanos'. Até mesmo membros do governo italiano — outro país em que vicejam movimentos separatistas — condenaram as ações do governo espanhol.
Toda a situação pode rapidamente sair do controle do governo espanhol. Aguardemos.
Deveria a Catalunha ser independente?
Somente os catalães, e ninguém mais, podem responder a esta questão. Alguns catalães se consideram espanhóis. Outros, não. Vários espanhóis consideram que a Catalunha é parte da Espanha. Outros, não.
Mas o que já está realmente claro é que há milhões de catalães (há 7,5 milhões de habitantes na Catalunha) que se consideram politicamente dominados e usurpados de sua soberania, e ressentem isso. Sendo assim, por que eles deveriam continuar vivendo sob um governo espanhol, sendo que sua história, sua cultura e seu idioma não são espanhóis?
Essa é uma pergunta justa e direta, para a qual as democracias ocidentais não têm uma resposta fácil. Se a intelectualidade ocidental venera tanto a democracia, ao ponto de dizer que as eleições democráticas são sacrossantas, então os resultados também teriam de ser sacrossantos, independentemente de quais sejam. Será que os democratas realmente defendem a democracia? A realidade é que não. Para eles, a democracia só é boa quando concordam com seus resultados.
Ludwig von Mises já havia resumido sucintamente o problema em seu livro Liberalismo — Segundo a tradição clássica:
A circunstância de se ver obrigado a pertencer a um estado, contra a própria vontade, por meio de uma votação, não é menos penosa do que a circunstância de se ver obrigado a pertencer a esse estado em razão de uma conquista militar.
Certamente, há vários indivíduos que se sentem como os catalães em vários países do mundo. Eles não consideram que o governo central seja legítimo (independentemente de como este governo foi formado) e represente seus verdadeiros interesses. Mais: eles sentem que "seu" governo não só não os representa, como também lhes é abertamente hostil. Por que obrigar tais pessoas a continuar sob este jugo?
A secessão deveria ser permitida para aquelas pessoas de quem discordamos?
Mas há também outras questões extremamente pertinentes sobre o que uma Catalunha independente realmente significaria, não só para a economicamente combalida Espanha, mas também para a vizinha França e o resto da União Europeia.
Há quem argumente que a Catalunha é a Espanha, e que suas antigas reivindicações de independência nada mais são do que um movimento nacionalista repleto de propagandas falsas com o intuito de criar um movimento político. Segundo essa crítica, os separatistas seriam espertalhões à procura de mais poder político, e estariam fazendo isso se aproveitando de um sentimento minoritário.
Ainda que seja verdade, isso não aborda a questão fundamental, que é a da auto-determinação. Logo, a principal questão continua sem resposta: deveriam os catalães ser proibidos de tomar suas próprias decisões, ainda que estas decisões sejam "ruins" e contrárias ao que nós (ou a Espanha ou a União Europeia) pensamos?
Sim, é fato que algumas pessoas ficariam em pior situação em caso de uma Catalunha independente. Porém, de mesma maneira, alguns espanhóis também ficarão objetivamente em melhor situação como resultado de não mais estarem politicamente presos à Catalunha. No mínimo, não mais teriam de lidar com políticos catalães enviados a Madri para impor ao resto da Espanha regulações, tributos, subsídios e tarifas protecionistas que supostamente são do interesse exclusivo da Catalunha.
Trata-se de uma questão factual complexa, e ambos os lados têm argumentos. Mas o fato crucial é este: se uma Catalunha independente estará em melhor ou pior situação é algo altamente subjetivo, não cabendo a nenhum de nós decidir.
A auto-determinação sempre deve ser o supremo objetivo político
O que nos leva ao ponto principal: a auto-determinação. É isto, e apenas isso, o que deve conduzir toda e qualquer medida política.
Para os libertários, a auto-determinação é o supremo objetivo da política. Em termos puramente políticos, auto-determinação é liberdade.
Em um mundo ideal, a auto-determinação se estenderia até a menor das minorias, que é o indivíduo, o qual deve usufruir uma completa soberania política sobre sua vida. Afinal, se você não gosta do governo sob o qual vive, deve ter o direito de se separar e criar um outro.
Porém, em um mundo imperfeito, os libertários deveriam sempre defender governos menores e mais descentralizados como sendo uma medida pragmática rumo a uma maior liberdade. Nosso objetivo deve ser o de fazer regredir poderes políticos sempre que possível, retirando-os da esfera federal e centralizadora e devolvendo-os a estados e, melhor ainda, municípios autônomos. O objetivo sempre deve ser a descentralização, fazendo com que estados grandes e centralizadores sejam menos poderosos. Barcelona sempre será menos perigosa que Madri. A legislatura de um estado americano sempre será menos temível que o Congresso em Washington.
Alguns libertários costumam argumentar, de maneira nada prática, que a secessão é uma coisa negativa porque "cria um novo estado". Mas este é um ponto de vista bastante simplista, dadas as realidades geográficas do planeta Terra. A menos que alguém esteja formando um novo estado situado completamente em águas internacionais, ou na Antártida, ou no espaço sideral, a criação de qualquer estado novo terá necessariamente de ocorrer à custa de algum estado existente.
Assim, a criação de um novo estado — por exemplo, na Catalunha — seria feita à custa do atual estado conhecido como "Espanha".  Por causa da secessão, o governo espanhol seria privado de receitas dos impostos dos catalães e das vantagens militares do território. 
Consequentemente, o estado que perde território torna-se necessariamente enfraquecido. (Vale lembrar, por exemplo, como a dissolução da URSS em dezenas de novos países enfraqueceu aquele estado. Mesmo a divisão da Tchecoslováquia em República Tcheca e Eslováquia também foi um golpe ao poder centralizado.)
Portanto, a secessão, em vez de ser vista como apenas "um ato que cria um novo estado", deve ser vista como um ato que enfraquece um estado existente.
Adicionalmente, além de enfraquecer estados, a vantagem, pela perspectiva do indivíduo, é que ele agora tem à sua disposição dois estados para escolher, onde antes havia somente um. Agora, o indivíduo tem mais opções: ele pode, mais facilmente, escolher um lugar para viver que seja mais adequado ao seu estilo de vida pessoal, ideologia, religião, grupo étnico e assim por diante. Um mundo composto de centenas, milhares ou mesmo dezenas de milhares de estados (ou de regimes de diversos tipos) ofereceria muito mais escolhas para os residentes que desejassem mudar sua situação de vida.
Mais: governos pequenos possuem vários concorrentes geograficamente próximos. Se um governo passar a tributar e a regulamentar mais do que seus concorrentes, a população emigrará, e o país sofrerá uma fuga de capital e mão-de-obra. O governo ficará sem recursos e será forçado a revogar suas políticas confiscatórias. Quanto menor o país, maior a pressão para que ele adote um genuíno livre comércio e maior será a oposição a medidas protecionistas.
Tudo isso é extremamente saudável para a liberdade. Separatismos nos deixam mais próximos do objetivo supremo, que é a auto-determinação em nível individual. É sempre positivo para liberdade reduzir o número de indivíduos sobre os quais um determinado governo pode exercer sua autoridade.
A secessão fornece um ambiente que genuinamente tolera a diversidade, pois cria um arranjo em que pessoas de cultura, religião e comportamento distintos não estão todas sob a mesma canga estatal e não mais são obrigadas a conviver sob as mesmas regras.  A secessão fornece um arranjo que permite que pessoas com visões e interesses completamente divergentes vivam pacificamente como vizinhos, em vez de serem obrigadas a sofrer sob um mesmo governo central que as joga umas contra as outras.
Toda e qualquer secessão deixa o indivíduo mais próximo do ideal da auto-determinação.
Conclusão
Para que a defesa do princípio da auto-determinação tenha sentido, é necessário permitir que outras pessoas tomem decisões com a quais não concordemos. A concorrência política é algo que só pode trazer benefícios ao indivíduo.
Por isso, deixem a Catalunha se separar, caso assim ela decida.

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