Entrevista com Cesar Benjamin
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– O senhor causou uma grande polêmica com o movimento negro por conta da sua última postagem. O senhor esperava toda essa repercussão?
– Faço esse tipo de alerta sobre os perigos da racialização da nossa sociedade desde a década de 1990 e desde então sou patrulhado. O problema só se agravou. Hoje leio nos jornais, rotineiramente, expressões como “o escritor branco Fulano de Tal”, “o cineasta negro Beltrano”, “o professor Cicrano, branco”. Naturalizamos a divisão racial dos brasileiros. Ninguém mais reage. Dizer que os brasileiros mudam de calçada quando veem uma criança negra na rua é uma ofensa ao nosso país. Essa histeria tem que ser contida. Alguém tem que dizer que isso é mentira.
– O que, exatamente, o senhor quis dizer quando afirmou que a "racialização do Brasil foi uma criação do Departamento de Estado dos Estados Unidos"?
– Há muitos anos amigos gaúchos pediram-me que os recebesse no Rio de Janeiro e os acompanhasse em uma reunião que teriam na sede da Fundação Ford, que ficava na Praia do Flamengo. Queriam verificar a possibilidade de obter algum financiamento para projetos de educação em áreas rurais. Fiquei chocado com o que vi. Os funcionários da Fundação disseram abertamente que só financiariam projetos que destacassem a questão racial no Brasil. Exigiram que eles mudassem todo o projeto que levaram. Estabeleci ali uma conversa tensa sobre isso. Um deles disse, para todos ouvirmos: “Temos 15 milhões de dólares e vamos provar que o Brasil é racista.” Entendi perfeitamente a mensagem.
Pensemos num computador. Ele tem um hardware, que são seus componentes físicos, mas para funcionar precisa de um software, um programa que lhe dá as instruções sobre o que fazer. Uma sociedade também tem componentes físicos, que são a sua infraestrutura, e componentes ideológicos, que organizam o comportamento das pessoas. A Fundação Ford, que é um braço do Departamento de Estado, mirou no coração do nosso software, o conceito de povo brasileiro. Acertou em cheio. Se não há povo brasileiro, o Brasil não vale a pena. Isso é parte da grande crise civilizatória que se abateu sobre nós e nos paralisa.
– O senhor acha que o Brasil é um país racista? Ou o senhor acha que vivemos uma democracia racial? Por quê?
– Há racismo no Brasil, assim como há em praticamente todo o mundo. Nunca usei e não conheço quem tenha usado a expressão democracia racial. Mas, ao contrário do que ocorre em vários outros países, o sistema de valores que a sociedade brasileira escolheu não legitima o racismo. Isso é muito importante. Um sistema de valores não descreve fielmente o que existe, mas aponta os caminhos que queremos seguir. Sinaliza uma trajetória desejada. Os americanos transformaram essa nossa grande virtude em hipocrisia. Adestraram uma geração de militantes que detesta o Brasil.
– Muitos argumentam que, em sua palestra no TED, a atriz Thais Araujo, ao dizer que as pessoas mudam de calçada quando vêm seu filho, estaria falando de forma simbólica, metafórica, sobre o racismo no Brasil. O senhor não viu desta forma?
– Eu não vi a palestra da atriz, por quem tenho grande afeto. O que me chamou a atenção não foi a palestra em si. Foi a quantidade de gente que replicou essa barbaridade nas redes sociais de forma completamente acrítica, como se fosse verdade literal: os brasileiros atravessam a rua quando veem uma criança negra. Francamente...
– As estatísticas mostram que a discriminação racial é um fato no país. Os negros são os mais pobres, os que mais morrem, os que mais são vítimas da polícia, a maior parte da população carcerária. O senhor discorda disso?
– Uma grande mentira só prospera se tiver alguma aderência à realidade. Há verdade em tudo o que você diz, embora essas estatísticas sejam, em geral, de péssima qualidade. Mas são verdades seletivas, que acabam servindo a uma grande mentira: o Brasil é o país mais racista do mundo... A maior parte da população negra foi escrava até quase o final do século XIX, há poucas gerações, e nossa mobilidade social não tem sido suficientemente grande para alterar posições historicamente constituídas. É um problema gravíssimo. Dedico minha vida a lutar contra ele. Mas a racialização não nos ajuda em nada. Só acrescenta mais um problema. E nos impede de ter uma aproximação amorosa em relação ao nosso próprio país.
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