domingo, 3 de julho de 2016

Até onde é possível permitir que o direito seja instrumentalizado pela canalhice?

Até onde é possível permitir que o direito seja instrumentalizado pela canalhice?

"Um advogado que evidentemente está repleto da mais íntima convicção... que seu cliente lhe pagará bem." (Daumier - "Le Gens de Justice" - 1845)



Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro


No lodaçal da política brasileira, a noção do que seja ética já sucumbiu.

Não escapa até mesmo a instituição mais nobre, que deveria primar pela correção na defesa das causas e das pessoas em busca de justiça: a advocacia.


O lodo petista chega à advocacia

A confusão entre engajamento ideológico e interesse econômico tomou conta de toda a máquina burocrática estatal nos governos de Lula e Dilma. Essa confusão está na origem dos escâncalos de corrupção petista e, também, na exacerbada defesa dos envolvidos por militantes partidários.

Se o equívoco, embora não justificável, pode ser compreendido entre leigos, em relação aos profissionais do direito é indesculpável. Assim ocorre com a lamentável imersão de bons colegas e bancas de renome, no lodaçal das boas intenções petistas... noticiada nos últimos anos.

Primeiro, apareceram notícias sobre escritórios que se tornaram a meca das atividades de governo geridas pela "companheirada no poder". Demandas canalizadas independente de assunto, grau ou especialização (afinal, para tudo se terceiriza e se contrata).

O fenômeno abrangeu misturas duvidosas, como a defesa de políticos junto à justiça eleitoral e, quando tornados dirigentes, em casos de crime de corrupção ou improbidade administrativa.

Ficaria isso no campo da relação da solidariedade entre companheiros se as defesas não fossem conectadas a polpudos contratos de prestação de serviços à administração nas quais os clientes estavam inseridos, envolvendo licitações e contratos de interesses destes com os próprios órgãos que dirigiam...

Conflitos de interesses, convergências e divergências, denúncias de honorários estratosféricos (e suspeitas de repasses idem), passaram a ser noticiados com frequência.

Depois dessa onda, veio outra denúncia: a "porta giratória" da indicação de "companheiros" (ou simpatizantes da "causa"), para os chamados quintos constitucionais da magistratura dos tribunais, como uma espécie de "premio por serviços prestados" (?), ou forma de reforçar a "blindagem" de líderes prestes a serem julgados pelo órgão correspondente.

A porta se estendeu para outros setores, como as agências reguladoras, estigmatizando jovens promessas, nomeadas para cargos públicos e precocemente enredadas nas notícias sobre ligações perigosas.

Então, como se já não bastasse, surgem noticiários sobre  contratação de escritórios ligados a este ou aquele magistrado, ou vinculado por parentesco a um ou outro gestor público. Contratos firmados com estatais e empreiteiras despencaram, coincidentemente, no mesmo período em que casos de interesse da "companheirada" emergiam do mar de lama, pescados pelo aparato judiciário.

Abordados diuturnamente pela mídia, amigos, filhos, parentes e contraparentes de cidadãos agregados a "todos e todas" postados no poder, com título de "ministro" ou outro similar de exercente em cargo público - apareceram intermediando causas, interesses, lobbies, em franca orgia de promiscuidades relacionais - orgias financiadas por estatais ou por empreiteiras de obras (cujo sentido "obrar" transcendeu aquele da construção civil...). 

Cedendo à pressão popular, a Justiça acionou sua máquina, projetando luz sobre malfeitos de toda ordem. Como resultado, "companheiros", amigos dos amigos, laranjas e prepostos, começaram a ser encarcerados ás pencas (sem apelação, ou melhor, com várias...).

Então, veio a derradeira onda, envolvendo padarias jurídicas de todo tamanho, encarregadas de passar o verniz da banca de grife sobre ligações perigosas com resultados alarmantes. Um verdadeiro mercado de lavanderias e aquecedores de moeda corrente com título acadêmico.

Corporações multinacionais, grandes estatais, projetos culturais, fundos de pensão,  fundos de investimentos e bancos... reputações destroçadas no moedor de carne humana das operações da Polícia Federal.

"Ofendidos, humilhados e endinheirados"


A reação não tardou a ocorrer.

Surgiram manifestos de toda ordem: de advogados contra juízes e promotores, de juízes e promotores contra advogados, de advogados contra advogados, "militontos" contra outros tontos e vice-e-versa.

Um espetáculo triste. Misérias morais expostas mutuamente...

De fato, roupas sujas lavadas a jato, não se limpam com manifestos impressos em papel. Afinal, o pano de fundo sempre foi e é a lamentável onda de favorecimentos e contratações transversas, por estatais, políticos e empreiteiras envolvidas em escândalos. 

A cada denúncia sobre contratações trianguladas de nobres prestadores de serviço por estatais e empreiteiras, para lavar propinas como honorários, choveram manifestos, desagravos, protestos e processos. Uma verdadeira infestação de acusações e desagravos.

Defensores dos "ofendidos e humilhados" pelas instituições republicanas que combatem a corrupção no Brasil, irromperam na sala da Justiça, com seus ternos bem cortados sob holofotes, marchando sobre um tapete vermelho de indignação, enquanto a ética sumia pela janela...

Recentemente, surgiu outra constrangedora novidade: com arrogância peculiar, dirigentes petistas informaram que "dinheiro não faltará" para a contratação de advogados de peso - "a nata da advocacia brasileira" - para formar uma "equipe de altíssimo nível e respeitabilíssimo curriculum", visando cuidar da defesa do ex-presidente Lula.

A ideia, segundo anotou Mônica Bergamo, da Folha de São Paulo, seria "formar um grupo sênior, com profissionais acostumados a fazer o enfrentamento midiático e político de casos de grande repercussão, além da parte jurídica". 

Seria isso uma "nata" ou uma bravata? 

Pergunto se essa forma de anúncio, absolutamente dinheirista (a questão monetária salta a cada linha da matéria), seria algo... ético... 

Pergunto se, diante de tamanha promiscuidade, subscrever manifestos e sair por aí arrogando a autoridade dos que se dão enorme importância, pode ser considerado algo eticamente aceitável.

A absoluta necessidade midiática de demonstrar que o dinheiro (às pencas), move a indignação,  é algo que moralmente se louve?

Por tudo que se viu, se vê, ouve e lê, o milk-shake de relações  espúrias entre estatais, empreiteiras, institutos, partidos, bancas e prestadores de serviços, interesses políticos, financeiros e de favorecimentos, é mais indigesto que qualquer cidadão de bem poderia suportar engolir sem vomitar... 

"Pois é, o Ministério Público disse coisas muito
desagradáveis a seu respeito.. Seria o caso de
deixar cair ao menos uma lágrima do olho. Isso
faria bem..."
(Daumier - 1845 - "Le Gens de Justice") 


É preciso se indignar para resgatar a ética!



Em respeito à profissão que amo, aos colegas que lutam e trabalham, dia e noite, para sustentar suas famílias com dignidade, cabe perguntar:    

1- Será que a miséria humana, a mesquinhez, a falta de princípios, a estreiteza ideológica, a falta de caráter e dignidade, chegou a tal nível baixeza que, ao fim e ao cabo, sobrou apenas... dinheiro? 

2- Em meio a toda essa lama, na qual chafurda a classe política brasileira, sustentada com o dinheiro do sofrido povo brasileiro - receber quantias de procedência tão ruim não gera um dilema moral?

3- Há quem possa afirmar-se bem sucedido, quando o alegado "sucesso" ocorre às custas da saúde, da dignidade, da educação, da segurança e do futuro da população mais pobre? A carga de contribuição fiscal indireta - inversamente proporcional à miséria em que vive a população espoliada pela corrupção, não afeta a consciência de quem fatura com o conflito? 

4- É ético fechar os olhos à  corrupção praticada pelo contratante, quando se está ciente que o dinheiro dos honorários pode ter sido auferido com a deseconomia, o desemprego, o sucateamento de empresas e bens públicos e a morte de pessoas deixadas à míngua nas filas dos postos de saúde, nas salas de espera da previdência, humilhada nos balcões de atendimento de serviços públicos sucateados? 

5- Aceitar receber quantias "nababescas" para servir de bonequinho de enfeite engravatado, ornando o bolo de lixo da corrupção, assado e sustentado com dinheiro roubado da nação brasileira... seria algo digno de se alardear?

6- DATA VENIA, no último caso relatado - da contratação "a peso de ouro" de um "dream team", é lúcido entender o sagrado ofício de garantir um direito de defesa necessita ser ostensivamente monetarizado? 

Não questiono a figura e a importância histórica e conceitual, da advocacia. Muito menos questiono a dignidade da profissão de advogado. Como advogado sei bem da dureza que é assumir casos  que causam antipatia popular, e a necessidade de ser bem remunerado por isso. 

Porém, a forma como tudo é divulgado, postado e transmitido, mídia afora, incluso por colegas,  por magistrados e procuradores, deveria ser motivo de preocupação, não apenas minha, mas de todos os organismos de representação e tutela da advocacia, do judiciário e do ministério público.

Muito profissional envolvido, talvez por se encontrar absolutamente deslumbrado com a oportunidade do próprio protagonismo, não se apercebe que, de tanto advogar para canalhas, termina por patrocinar a canalhice... 


Chicaneiros e manipuladores



Houve, até um tempor atrás - quando não se previa que a lama atingiria o próprio operador do direito em causa, um exagerado destaque para formas e posturas canalhas, arrogantes, que estimularam, no entanto, uma profunda distorção de valores na advocacia.

Essa postura, infelizmente, ainda vigora por aí... e alhures.

Há, também, uma instrumentalização nociva de princípios caros ao Direito, como se a função da norma jurídica fosse a de se prestar a qualquer tipo de interpretação que  proteja poderosos de plantão...

A canalhice não subsiste se não ocorrer simbioticamente. Daí a correspondência clara entre condutas que fariam até a "mulher de Cesar" corar.

De fato, se é cediço que não basta ser honesto, é preciso parecer ser - há quem ache inteligente não apenas não ser... como parecer que não é mesmo...

Essa postura canalha "oficial" integra o chamado "custo Brasil". Ela não apenas envolve corrupção - abrange também a insensibilidade social da burocracia, ciosa dos salários altos que recebe, somados a benefícios nababescos, temperados com aquela perversa sensação de impunidade.

Esta síndrome da arrogância afeta razoável parcela da Administração da Justiça, seja por conta da arbitrariedade recalcitrante, seja pela desonestidade (ainda que praticada por ínfima parcela), seja, também, pela morosidade incrementada pelo comodismo burocrático. Tudo isso contribui para fermentar o caldo de cultura da canalhice no direito nacional e elevar a chicana à categoria de patrimônio jurisprudencial.

Chicana é expediente utilizado pela parte em processo judicial, visando criar dificuldades com base em argumentos maliciosos e irrelevantes, abuso de recursos e uso de formalidades redundantes e dispensáveis.

Há uma certa tolerância no mundo jurídico para com a chicana, quando resulta de ato desesperado ou visa "ganhar tempo" na busca de elementos que realmente importem ao deslinde dos fatos. No entanto, quando a chicana visa desmoralizar as instituições, permitir o uso constante da má-fé,  garantir a manobra capciosa. Quando é utilizada como trapaça ou tramóia para obstar o efetivo cumprimento da lei ou obstruir a justiça, torna-se molecagem intolerável.

Essa molecagem parece estar sendo absorvida por parcela "contaminada" do judiciário nacional - e não raro  a mistura de arrogância, chicana e arbitrariedade engajada, termina por ocasionar estragos profundos no equilíbrio de poderes da república , esfarelando a credibilidade da Justiça.

Bravos e poucos magistrados, é certo, estão empenhados em romper com o círculo vicioso da incompetência, do populismo e da corrupção.  Não por outro motivo, têm sido ovacionados pela população.

Juristas que honram a história da advocacia também se mobilizam, alguns subscrevendo peças importantes para o deslinde de dilemas nacionais - como é o caso do impeachment da presidente petista. Estes também recebem o reconhecimento popular - e suportam estoicamente o achincalhe intentado pela matilha de defensores do malfeito governamental.

Na verdade, há um contraste entre o que sente a opinião pública e o que se opina a respeito desses mesmos magistrados e advogados nos círculos esquerdistas, nas rodinhas de poder e, pior, entre grande parcela de juristas articulados com o poder político e econômico nacional.

Esse contraste é sintomático de uma profunda distorção de valores. Distorção que revela o escárnio, transcende a militância, contraria a deontologia profissional, destrói currículos e mancha biografias.

O conflito, muitas vezes televisionado, reproduzido nas redes sociais, transmite um péssimo sinal para a sociedade. Sinaliza algo muito ruim, também para toda uma nova geração de profissionais. Passa a noção de que a razão do sucesso não está na advocacia digna ou no exercício honrado de um cargo público. Está, sim, na canalhice.

"Informam" certos operadores do direito, à opinião pública, que o cinismo é rentável e a podridão é socialmente aceitável.

Fazem os chicaneiros engajados, uso deliberado da venda que cega a justiça, dando à cegueira um sentido sórdido... para coonestar com peripécias doutrinárias mais afetas à mídia intestina que ao debate sério da causa do Estado Democrático de Direito.

A lama por eles produzida, se espraiou em vários eventos de repúdio ao impeachment e à prisão de políticos. Se reproduziu nas greves e assembleias estudantis, que promoveram e promovem o ódio e estimulam o desrespeito à Justiça.

Com efeito, manifestações desairosas a colegas que exercem o direito constitucional e moral de se indignar, não contribuem para o contraditório - apenas estimulam a canalhice.

Honoré Daumier: O derradeiro conselho de ex ministros sai pela janela, quando a República entra pela porta...


A propósito, os desenhos de Daumier não ilustram esse artigo por acaso. As gravuras nos remetem à farsa que termina ditando a triste realidade.

Há misérias engravatadas, ricas, eruditas e deslumbradas. Nem por isso, deixam de constituir misérias...


Há uma ética a ser seguida

A preocupação deste artigo não é vã. Ela encontra respaldo nas regras de conduta da advocacia.

Reza o Código de Ética da Advocacia Brasileira, art. 2o., VII,  que o advogado deverá abster-se de : 
"a) utilizar de influência indevida, em seu benefício ou do cliente;
b) patrocinar interesses ligados a outras atividades estranhas à advocacia, em que também atue;
c) vincular o seu nome a empreendimentos de cunho manifestamente duvidoso;
d) emprestar concurso aos que atentem contra a ética, a moral, a honestidade e a dignidade da pessoa humana."

Assim, antes dos desagravos de praxe, das acusações sobre o antes, o durante e o depois, dos debates inúteis sobre as origens de autoria dos favorecimentos entre tucanos e petistas, peemedebistas, pepistas e pecedobistas,  das defesas pomposas de escritórios, juristas, ministros e agregados... deveria todo o mundo jurídico, sem exceção, tomar vergonha na cara e, simplesmente, fazer silêncio. Reduzirem-se aos autos dos respectivos processos.

É certo, como vaticina Esopo, que todo tirano usa de um pretexto justo para exercer sua tirania.

Nesse sentido, tiranetes pululam nos escaninhos e mesas emboloradas do serviço público - como miniaturas do "Inspetor Javert", protagonizando arbitrariedades a título de promover a Justiça. No entanto, o combate às tiranias também não pode servir de pretexto à manutenção da injustiça.

Nesse sentido, é lamentável testemunhar (e moralmente ter que desmerecer), o esforço de articulação da companheirada engravatada, de juristas engajados, na defesa de uma esquerda que tem se comportado de maneira esquerda. Pior ainda quando a defesa se estende aos braços direitos dessa mesma esquerda...

Os arautos da canalhice bem remunerada deveriam calar a boca, para não expelir mais lixo sobre o já poluído lamaçal em que se encontram atoladas a Justiça e a Política brasileiras.

Não merece qualquer respeito, temor e muito menos admiração o que se testemunha hoje, nos debates  pretensamente "jurídicos", em torno das condutas de políticos corruptos, beneficiários da corrupção e suas mazelas junto à justiça criminal.

Pelo contrário, há de se registrar, com firmeza, o profundo desprezo a todo esse opróbrio, coberto de cinismos e posturas igualmente desprezíveis.

O destino é implacável. Queimará a todos na fogueira de suas próprias vaidades, tal qual o incinerador gera seu calor na autocombustão do lixo nele depositado.

Tout d'abord l'avocat! Le courage, pour un avocat, c'est l'essentiel, ce sans quoi le reste ne compte pas *  - ensinava Robert Badinter - o grande jurista e político socialista que lutou para abolir a pena capital na França.

Permanecerá, ao fim e ao cabo, o verdadeiro advogado. O profissional corajoso, heróico e batalhador.

Assim como nos escândalos anteriores, quanto aos canalhas, nada permanecerá gravado na história, apenas a cinza, o opróbrio e o esquecimento...



Nota: 
*Primeiro de tudo, o advogado! A coragem, no advogado, é essencial, caso contrário, o resto não importa...


Antonio Fernando Pinheiro Pedro

Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB.  É  Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.


FONTE http://www.theeagleview.com.br/2016/02/quando-fogueira-das-vaidades-queima-lixo.html

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