terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Um misterioso brinde à memória de Edgar Allan Poe

Um misterioso brinde à memória de Edgar Allan Poe
Um dos escritores mais admirados de todos os tempos é alvo de um estranho ritual anual: a visita do Poe Toaster


 (Foto: Reprodução)


Acidade de Baltimore, no estado de Maryland, é considerada, hoje, a metrópole independente mais populosa dos Estados Unidos. Em meio ao ritmo alucinante da vida moderna por lá, poucos se dão conta de que, todo ano, um estranho ritual acontece quase religiosamente nas primeiras horas do dia 19 de janeiro no Cemitério Westminster Hall -- local onde repousa Edgar Allan Poe (1809 – 1849), reconhecido como um dos maiores autores da literatura ocidental.

O acontecimento — que atrai não somente estudiosos e pesquisadores da área literária, mas também curiosos — tornou-se um celebrado evento na cidade, acrescentando um novo mistério à já nebulosa biografia do autor. Referimo-nos à visita que a enigmática figura do Poe Toaster (algo como “brindador a Poe”) realiza, anualmente, ao autor de O Corvo.
Desde 1949, conhaque e rosas
Há quase setenta anos, sempre no raiar da data de nascimento de Poe, um desconhecido entra no cemitério e se dirige para o local do cenotáfio que marca o enterro do autor (o corpo seria depois removido desse ponto e enterrado de novo em um outro lugar, dentro do mesmo cemitério).


Admiradores de Poe, que vão desde estudantes de literatura ao curador da Sociedade Histórica de Maryland, reúnem-se para testemunhar a visita.

O que atrai as pessoas é o ritual em si: durante a aurora, a pessoa  se aproxima do cenotáfio com uma garrafa de conhaque fechada. Ele (ou ela?) a abre, verte um pouco em um copo, brinda à memória do escritor e logo depois desaparece. Para trás, deixa sempre a garrafa com o resto da bebida e três rosas.

As testemunhas divergem sobre como as flores são dispostas: algumas afirmam que são sempre em formato de triângulo. Outras contam que as rosas ficam com os botões em cima uns dos outros, os caules sendo dispostos para cima, para a direita e para a esquerda.
Ninguém sabe dizer ao certo quem é essa pessoa, ou mesmo o real motivo que a leva a realizar o ritual.
De acordo com esta matéria do jornal inglês The Telegraph, Marilyn Millford, 38 anos, de Maryland, assiste à visita há cinco e afirma se tratar de um homem. Ela estava entre o grupo de pessoas que testemunharam o Poe Toaster em 2017 e afirma que se trata “de uma tradição de família que o atual ‘brindador’ teria herdado de seu pai”, uma vez que as visitas se estendem por quase sete décadas.

Registros e rumores
São raríssimos os registros fotográficos do Poe Toaster. Apenas recentemente o misterioso visitante foi “capturado” em uma foto publicada pela revista Life, de data desconhecida.

E os rumores sobre o verdadeiro motivo por trás de um ritual tão peculiar são diversos: vão desde uma penitência familiar até um trote de calouros de alguma universidade, passando por eventuais membros de alguma sociedade secreta que insiste em realizá-lo, por um truque de marketing para chamar a atenção da mídia, por uma atração fabricada para atrair os turistas do mundo todo a Baltimore e até por um escritor ou jornalista que presta homenagem a um de seus heróis.

Símbolos e notas
Além disso, há pontos que nunca foram esclarecidos. O real significado dos objetos que o Toaster deixa para trás ainda é debatido. As rosas, segundo a maioria das testemunhas, podem representar uma lembrança de três vidas: a vida do próprio Poe, a de sua esposa (e prima) Virgínia Clemm (1822 – 1847) e a de sua sogra (e tia) Maria Clemm (1790 – 1871).

A escolha do conhaque, bebida que não encontramos na obra de Poe, é atribuída a uma tradição pessoal do “brindador” e de sua família.

A partir de 1993, a confusão se intensifica. Muitas notas passaram a ser deixadas junto com os objetos tradicionais, fazendo com que algumas opiniões pessoais sobre eventos não relacionados fossem expressas. Em 1993, a primeira nota afirmava que “a tocha será repassada”. Em 1999, outro escrito relatava que o Toaster original tinha falecido no ano anterior, e que a tradição havia sido repassada para seu filho.

Superbowl e presságios
Em 2001, o ritual foi realizado poucos dias antes do Super Bowl XXXV, a final do campeonato nacional de futebol americano. Em campo, os times do Baltimore Ravens (Corvos de Baltimore) e do New York Giants (Gigantes de Nova Iorque). A nota deixada seria a primeira a comentar um assunto desses.
Dizia: “Os Gigantes de Nova York. A escuridão e a decadência e o grande domínio azul sobre todos. Os Corvos de Baltimore. Mil feridos sofrerão. Edgar Allan Poe, sempre”.

O bilhete causou estranhamento entre muita gente. Na mesma matéria do Telegraph, Albert Finkleman, 23 anos, estudante de literatura na universidade local e um dos observadores do ritual neste ano, acredita que o texto tenha sido deixado como uma tentativa de ligar o time dos Corvos à figura de Poe, por conta de seu famoso poema. Com efeito: a equipe ganhou seu nome em homenagem ao escritor.

Mas o presságio da nota, que parecia ser o de uma profecia inspirada no final do conto A Máscara da Morte Rubra, de 1842, não se cumpriu, pois os Ravens ganharam o jogo com larga vantagem.

Daí para frente, a cada ano, uma nota com uma mensagem diferente foi deixada. Em 2004, o “brindador” comentou enigmaticamente sobre seus próprio hábtos: “A memória sagrada de Poe e o local de seu descanso final não são lugares para conhaque francês. Com grande relutância, mas com o respeito à tradição familiar, o conhaque é colocado. A memória de Poe viverá sempre!”

Farsa
Para Jeff Jerome, ex-curador do Museu da Casa de Poe, as notas deixadas teriam uma explicação simples: o filho do original não queria levar a tradição tão a sério quanto seu pai.
O museu recolheu muitas das garrafas deixadas, bem como as notas, para expô-las, e assim guardar um pouco desse material para as futuras gerações.
Jerome parecia estar certo na iniciativa, pois uma nota deixada em 2008 trazia um conteúdo tão desanimador que o ex-curador a escondeu e anunciou que não fora deixado nenhum bilhete. Segundo ele, o texto indicava que a tradição poderia em breve chegar a um fim.
Dito e feito: em 2010, não houve registro de visita da misteriosa figura.
Por conta disso, no ano seguinte, surgiram quatro imitadores. Jeff Jerome rapidamente constatou a farsa porque nenhum deles deixava as rosas no arranjo tradicional, nem dava, ao ex-curador, o sinal secreto de identificação que havia sido combinado.

Finais e recomeços
Em 2015, a Sociedade Histórica de Baltimore fez uma seleção para um novo “brindador”. Após ser “eleito”, o Toaster estreou em 2016, três dias antes do aniversário de Poe, vestido da mesma maneira e tocando um violino que executava a peça Danse Macabre, do compositor francês Camille Saint-Saëns (1835 – 1921).

“É de fato um espetáculo tão espontâneo que ninguém consegue ver algo parecido”, afirma Finkleman, já entusiasmado para rever o ritual em 2018. Sem dúvida, trata-se de uma história que o próprio Poe provavelmente gostaria de ter escrito.

*Sérgio Pereira Couto é jornalista e escritor.
Oscar Nestarez é ficcionista de horror e mestre em literatura e crítica literária. Publicou Poe e Lovecraft: um ensaio sobre o medo na literatura (2013, Livrus) e as antologias Sexorcista e outros relatos insólitos (2014, Livrus) e Horror Adentro (2016, Kazuá).
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