segunda-feira, 4 de setembro de 2017

‘Os intelectuais se tornaram cúmplices do poder’, afirma antropólogo





‘Os intelectuais se tornaram cúmplices do poder’, afirma antropólogo



















Para Flavio Gordon, a inteligência de esquerda, que apoia o PT, também deveria responder pela corrupção ocorrida nos governos petistas










José Fucs, O Estado de S. Paulo
02 Setembro 2017 | 16h00


O antropólogo Flavio Gordon, autor do livro 'A Corrupção da Inteligência'  Foto: Wilton Junior/Estadão

O antropólogo social carioca Flavio Gordon, de 38 anos, já apoiou o PT e esteve até na posse de Lula em Brasília, em 2003. Nos últimos anos, dizendo-se decepcionado com as práticas do partido no poder e incensado pelas ideias de pensadores conservadores, como o filósofo e cientista político alemão Eric Voegelin e o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, Gordon deu uma guinada ideológica radical para a direita. Em seu novo livro A Corrupção da Inteligência – Intelectuais e Poder no Brasil (Ed. Record), ele analisa como a esquerda brasileira conquistou a hegemonia na área cultural e faz uma crítica contundente ao papel submisso da intelectualidade nos governos petistas. Em entrevista ao Estado, Gordon diz que os intelectuais de esquerda “se tornaram cúmplices do poder” e também devem ser responsabilizados pelos desvios ocorridos nos governos petistas.
Para começar, o senhor poderia dizer a que exatamente se refere no livro ao falar dos “intelectuais”? Quem se enquadra nessa categoria?
Uso o termo “intelectual” em dois sentidos, um mais direto e outro mais crítico. O sentido mais direto baseia-se no conceito adotado por Thomas Sowell, intelectual e economista americano. No livro Intelectuais e Sociedade, ele inclui nessa categoria, sem qualquer juízo de valor, todos os que vivem das palavras, que se comunicam com o público, a “classe falante”. São professores e estudantes universitários, principalmente das chamadas humanidades, jornalistas, escritores, críticos, pessoas que lidam com a formação da opinião pública. O sentido mais crítico, no qual me concentrei, é o de Antonio Gramsci, o ideólogo do Partido Comunista Italiano, que vê o intelectual mais no sentido orgânico, como aquele que exerce uma influência política em nome de um determinado partido, que expressa mais ou menos os interesses da classe que ele pretende representar. O Gramsci ampliou o conceito de intelectual e incluiu artistas e influenciadores de opinião. Para ele, qualquer uma pode ser um intelectual e contribuir para reforçar uma determinada visão política e ideológica na sociedade. No livro, eu uso também o termo “inteligência” em dois sentidos ambivalentes. Pode significar tanto a “classe” dos intelectuais, quando se aproxima do conceito russo de inteligentsia, como um atributo individual. 
Quando o senhor fala em “corrupção dos intelectuais” o que quer dizer com isso? 
Estou me referindo a um processo em que os intelectuais abdicam de sua função primordial, de compreender e explicar a realidade, e querem interferir nos acontecimentos, em especial nos campos político e social. O problema não é os intelectuais se posicionarem politicamente. Isso sempre aconteceu, é natural. O grande problema é conceber a atividade intelectual exclusivamente como militância política. Um autor em que me baseio muito para criticar essa postura é o francês Julien Benda. Ele escreveu um livro clássico em 1927 sobre isso, intitulado A Traição dos Intelectuais, que teve muita influência na minha formulação.
Na prática, como esse fenômeno se manifestou no Brasil?
Depois da vitória do Lula, em 2002, os intelectuais, que tradicionalmente assumem um papel crítico em relação aos governos, se tornaram cúmplices do poder. A partir do momento que o PT dominou a máquina estatal, o “aparelhamento” se intensificou na área cultural. Houve um processo de “instrumentalização” da cultura, em função dos interesses partidários, nas universidades, editoras, redações de jornais, na chamada indústria cultural como um todo. Muitos intelectuais tornaram-se meros reprodutores do discurso oficial do partido e do governo. Outros ficaram em silêncio, adotaram uma postura de cumplicidade muda, com receio de sofrer represálias, ser mal vistos, prejudicar seus ciclos de relações. Foi um triste espetáculo.
O senhor pode citar um exemplo dessa “promiscuidade” dos intelectuais com o poder no País?
O caso do impeachment da Dilma foi escandaloso. Havia uma posição quase unânime na academia, principalmente nas ciências humanas, contrária ao impeachment da Dilma Rousseff. Tivemos até reitores de universidades federais se aproveitando de seu papel institucional para tomar posição contrária ao impeachment, de uma maneira claramente partidária e ideológica. Houve professores universitários de destaque chegando a comparar o impeachment da Dilma com o nazismo. O intelectual, o estudioso, tem de saber que uma coisa não teve nada a ver a outra. Se ele está disposto a sacrificar a própria reputação, a própria credibilidade, falando uma coisa dessas, é porque realmente a inteligência dele já está bastante corrompida. 

A corrupção dos intelectuais nos governos do PT foi respaldada pela ideologia, estava a serviço de uma causa
Historicamente, de que forma se iniciou esse processo no País? Como se criaram as condições para que isso acontecesse?
A partir da década de 1960, começou a haver uma ocupação de espaço no modelo gramsciano, que prega a realização de uma revolução cultural antes da revolução política. A ideia é que antes de se tomar poder do Estado deve se preparar o terreno para quando os comunistas chegarem ao poder. Isso aconteceu nas universidades, nas editoras e também nas redações dos jornais. Criou-se todo um mecanismo de seleção de pessoas e de prestígios baseado nessa ideia de afinidade político-ideológica de esquerda. Passou-se a associar qualquer intelectual que não fosse de esquerda à ditadura. O pensamento conservador, liberal, foi sendo gradativamente banido, tido como não legítimo. A direita no Brasil se transformou num espantalho, numa fantasmagoria. Até a década de 1950, isso não ocorria. Existia um debate profundo, até violento, entre grandes intelectuais brasileiros, das mais diversas orientações políticas, inclusive nos jornais. As discussões eram públicas. Hoje, na universidade, as opiniões são quase homogêneas. Mesmo que as pessoas não concordem com essa visão, elas acabam não se manifestando para não ter problemas. 
Como o PT entra nisso?
Essa influência crescente do Gramsci no Brasil acabou provocando a saída de membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que não concordavam com a visão soviética de Luis Carlos Prestes, que era o grande líder da sigla. Muitos dos intelectuais que introduziram Gramsci no Brasil depois foram fazer parte do PT, no final da década de 1970 e começo da década de 1980, como os editores da Civilização Brasileira, os tradutores Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho, que morreu há pouco tempo, cuja participação na fundação do PT foi fundamental. Então, o PT já nasceu mais ou menos nesse contexto, de mudança de postura de integrantes do Partido Comunista para uma visão mais cultural. Aí, muito antes de chegar ao poder, com a eleição do Lula, o PT já tinha conquistado essa hegemonia cultural, como preconizava Antonio Gramsci. Quando o PT chegou ao poder, foi quase como uma coisa inevitável. Toda a narrativa era “finalmente chegou o Partido dos Trabalhadores”, “o encontro do Brasil consigo mesmo”, "a festa da democracia". Já havia todo um exército de intelectuais, jornalistas, formadores de opinião criando essa narrativa, preparando a sociedade para receber o PT. Quando o partido conseguiu chegar ao poder do Estado, já com a hegemonia cultural, foi muito mais complicado tirá-lo de lá.
No livro, o senhor diz que, por causa dessa postura, os intelectuais que sustentavam o PT também deveriam ser responsabilizados pelo que aconteceu nos governos petistas. Faz sentido culpá-los pelo envolvimento do partido em atos de corrupção?
Evidentemente, não digo que haja uma relação direta entre os políticos do PT envolvidos em corrupção e os intelectuais que os apoiam. O vínculo dos intelectuais com os acontecimentos se dá pela forma como eles abordam ainda hoje a corrupção praticada pelos integrantes do partido. O PT foi a única agremiação que tinha por trás um exército de “corruptos intelectuais”, como eu os chamo, que lhe dava respaldo cultural e intelectual. Foi uma corrupção respaldada pela ideologia, a serviço de uma causa, em vez da corrupção tradicionalmente praticada no País. Quando você tem uma justificativa moral para o seu delito, ele tende a ser ainda mais grave, a se espalhar e a atrair mais adeptos. 

O PT nunca teria chegado às dimensões que chegou sem o apoio dos intelectuais
Até que ponto os intelectuais tiveram um papel tão relevante na ascensão do Lula e do PT, como o senhor diz?
O poder cultural é de muito longo prazo. Há o poder econômico, o político, o militar e o cultural. Apesar de menos impactante de imediato, no longo prazo é o poder intelectual que vai moldando o imaginário das pessoas, construindo as narrativas, sedimentando as emoções e os sentimentos das pessoas. Então, o processo de conquista do poder pelo PT foi muito de longo prazo. Isso começou com um círculo pequeno de intelectuais, quando as ideias do Gramsci começaram a chegar para valer no Brasil, nos final dos anos 1960, bem antes de o PT surgir. Aos poucos, a coisa foi se espalhando e atingindo aquelas pessoas que estão na periferia da academia, que se formaram, mas não seguiram carreira acadêmica, como jornalistas e publicitários, que são muito suscetíveis à influência desses medalhões acadêmicos. A partir daí, as ideias começaram a circular através desses mediadores e foram chegando nos valores, na indústria cultural, na televisão. Foi isso que permitiu ao PT gozar durante muito tempo de certa imunidade de críticas. O PT era tratado até pouco tempo atrás como o partido da ética. Em vários momentos, criticar o Lula era algo visto como preconceito de classe, de região. Trata-se de um mecanismo supereficiente de silenciar as críticas e de proteção aos políticos petistas. 
Agora, o senhor afirma que sem o apoio dos intelectuais o Lula e o PT não teriam chegado aonde chegaram. Não há certo exagero nessa visão?
Acredito que não, porque é justamente isso que cria a imagem mítica do Lula, em contradição com a realidade dos fatos. É isso que faz com que exista uma militância disposta a segui-lo, porque tem toda uma camada de mistificação, criada pelos intelectuais, pelos agentes culturais, impedindo as pessoas de visualizar a realidade. Só isso explica que, nesta altura do campeonato, o Lula ainda tenha algum capital político. Se fosse qualquer outro, que não se beneficiasse dessa hegemonia cultural, já estaria liquidado. Eu costumo usar o exemplo do Demóstenes Torres, do DEM, que era um nome conservador. Depois que se revelou aquele escândalo dele, da ligação com o Carlinhos Cachoeira, aquela coisa toda, a carreira do homem simplesmente acabou. Ninguém saiu na rua para defender o Demóstenes Torres. Não houve intelectuais, jornalistas, artistas defendendo o Demóstenes. Isso é que chamo de poder cultural, para manter os cargos de poder, promover a mistificação dos políticos do partido. Sem isso, um partido não se mantém durante muito tempo no poder.
O senhor não está sobrevalorizando o papel dos intelectuais no PT?
Um dos insights que eu tive para escrever o livro foi tratar o PT não como Partido dos Trabalhadores, mas como Partido dos Intelectuais. Para mim, a base do PT são os intelectuais. O PT nunca teria chegado às dimensões que chegou sem o apoio dos intelectuais. Houve o movimento sindicalista, mas se o PT fosse só isso teria sido um fenômeno restrito. Tanto que a base que sobrou hoje, depois de o PT virar um partido relativamente popular, durante um período efêmero na sua história, foram os intelectuais, os acadêmicos, os universitários marxistas e gramscianos. Na verdade, o reduto do PT está na intelectualidade, na inteligência de esquerda brasileira. Inclusive, quando o PT surgiu, gabava-se muito disso. 
Esse grupo que o senhor menciona, apesar de muito ativo politicamente, sempre foi muito pequeno. Como conseguiu alcançar esses resultados?
Há um grupo mais ativo, doutrinário, que é pequeno, mas muito bem posicionado. Há também os medalhões acadêmicos nas principais universidades federais, que usam suas posições para fortalecer essa hegemonia. Finalmente, há o grupo dos que se acomodam por causa desse mecanismo de hegemonia de que eu falei. Ele não se envolve no processo de maneira consciente, para que o deixem em paz, para que possa seguir sua carreira acadêmica sem percalços, porque se não fizer isso vai sofrer muita pressão. No livro O Poder dos Sem Poder, o escritor e intelectual tcheco Václav Havel desenvolve o conceito do sistema pós-totalitário, num contexto que a União Soviética e os países satélites estão iniciando um processo de abertura. Mas mesmo com essa abertura, ele mostra que o sistema não acabou, mas tornou-se um totalitarismo mais silencioso, mais sutil. Isso acontece não só na academia, mas nas redações também. Tenho muitos amigos jornalistas que dizem que, em certos momentos, têm medo de expressar suas opiniões. 

A esquerda associava os críticos do PT à elite, para deslegitimar quem ousasse alertar a opinião pública
Ao falar da hegemonia cultural da esquerda no Brasil, o senhor critica também o PSDB. Qual o papel do PSDB nisso tudo?
Acredito que o PSDB teve um papel fundamental. Não o PSDB como um todo, mas o seu núcleo duro, o Fernando Henrique Cardoso, o José Serra. O Fernando Henrique, principalmente, foi um dos que estavam plenamente conscientes da estratégia de repartir o campo político brasileiro entre versões de esquerda, de banir a legitimidade política de qualquer coisa que não pertencesse às correntes da esquerda. A única direita permitida passou a ser a direita da esquerda. O PT e o PSDB têm as suas origens intelectuais na Universidade de São Paulo (USP) e travam uma disputa intestina pela hegemonia político-cultural da esquerda no país. O PSDB segue uma linha mais social-democrata, que pensa mais em resultados de longo prazo. Um termo que ficou muito na moda e agora acabou se tornando meio ridículo, mas que tem uma base real, é o tal do socialismo fabiano. De tanto o pessoal ter feito mau uso do termo, ele acabou perdendo o sentido, mas é bom recuperar o significado original. Ele designa os socialistas britânicos que tentavam um modo gradualista de instaurar o socialismo. No Brasil atual, essa turma é o PSDB. O PT tem uma visão mais radical, mais imediatista. Mas eles são “inimigos-irmãos”, como socialistas e comunistas na Europa, girondinos e jacobinos, mencheviques e bolcheviques. No fundo, com a estratégia do Gramsci, essas coisas se fundiam, havia muito diálogo entre eles. Essa oposição entre PT e PSDB é mais jogo de cena. Ela se dá muito mais em contexto eleitoral, de disputa de cargos, do que no contexto de disputa política no sentido mais nobre do termo.
Dentro do PSDB também tem gente como o João Doria, prefeito de São Paulo, e o Geraldo Alckmin, governador paulista. Não é preciso separar essas correntes que atuam no PSDB?
É verdade, há diferenças. Mas o Doria está surgindo agora. A gente não sabe direito o que ele é, nem se vai permanecer no PSDB. Agora, ele é meio um outsider do PSDB, tanto que não conta nem um pouco com a simpatia desse núcleo duro. O Alckmin, também, é um pouco democrata cristão, um pouco mais centrista. De todo modo, a esquerda se expande através de suas diferenças. Isso está meio que no DNA da esquerda, a ideia de uma evolução dialética. A direita, ao contrário, costuma se enfraquecer com os rachas internos. No momento, inclusive, a direita está vivendo uma disputa acirrada, muito feia, no Brasil. De repente, surgiu um pequeno espaço para a direita no País e tem gente indo com muita sede ao pote. Com a oportunidade de conquista do poder, acaba havendo uma disputa por posição, de vaidades. Mas é meio natural, nesse processo de renascimento da direita no País nos últimos anos, que cada um puxe para o seu lado.
O senhor afirma que, nos governos do PT, a esquerda recorreu a todos os expedientes possíveis para reforçar sua hegemonia na área cultural. Como isso aconteceu?
Basicamente, por meio do assassinato de reputação, da mobilização de agentes de influência em jornais, na academia, para deslegitimar quem ousasse alertar a opinião pública para o que vinha ocorrendo. A esquerda fazia associações entre os críticos ao PT e a elite, dizia que eles não gostavam do povo. Na época da União Soviética, os comunistas já faziam isso para demonizar os críticos do partido. É um fenômeno que autor frances Jean Sévillia chamou de “terrorismo intelectual”, em referência ao papel desempenhado pelos intelectuais franceses depois da Segunda Guerra, que se aplica perfeitamente ao que aconteceu nas últimas décadas no Brasil e se intensificou nos governos do PT. Tivemos até alguns casos de violência, como ocorreu com aquela blogueira cubana, a Yoani Sánchez. Ela foi recebida por um grupo de militantes estudantis com muita violência e até impedida de dar palestras no País na base da força.

Os principais nomes do pensamento conservador são inexistentes na academia brasileira
O senhor também tem uma postura muito crítica em relação ao Jornalismo nesse processo. Afirma que o Jornalismo, como a academia, foi essencial para sustentar o projeto do PT. Quer dizer que, no final, a culpa de tudo que aconteceu é da Imprensa?
Acredito que a Imprensa tem uma parte significativa de culpa, por ter evitado por muito tempo fazer críticas mais contundentes ao PT. A criação do Foro de São Paulo, organizado por Lula e Fidel Castro, durante muito tempo quase não repercutiu na Imprensa. Basta fazer pesquisa nos arquivos dos jornais. Toda aquela ligação do PT com a Venezuela, a Bolívia, o Equador, que era um projeto continental, o socialismo do século 21, não recebeu o tratamento devido. Depois do colapso da União Soviética, eles tinham o projeto de reconquistar o terreno perdido, de fazer na América Latina uma espécie de nova União Soviética. Ainda hoje todo o simbolismo é aquele simbolismo arcaico do comunismo, do imperialismo americano, é o mesmo vocabulário que se usava na década de 1960. A Imprensa teve um papel muito importante em não tornar isso conhecido e colocar esse tema no debate público. Não estou dizendo, obviamente, que todo mundo na Imprensa é petista Agora, até os críticos do PT restringiam suas críticas a alguns pontos e deixavam outras questões importantes de lado. Criticavam a corrupção, a má gestão, mas não tratavam desse projeto em comum, do Foro de São Paulo, desse projeto totalitário. Mesmo os críticos da esquerda brasileira acabam cedendo à narrativa da esquerda europeia e americana ao cobrir os acontecimentos na Europa e nos Estados Unidos.
Em sua opinião, como essa postura da Imprensa se manifesta no dia a dia?
Algumas agendas são tratadas como se fossem uma unanimidade. Por exemplo, o aborto. Quase toda a imprensa aborda isso como um direito das mulheres, uma evolução, e trata quem é contra como atrasado, arcaico, fundamentalista. Com as questões do direito ao porte de arma, da maioridade penal, acontece a mesma coisa. Nas redações, a maioria dos jornalistas – você sente isso pela cobertura – é contrária a essas ideias. O próprio vocabulário usado no noticiário reforça essa percepção. Toda ideia que sai um pouco da bolha dos jornalistas é tratada de forma pejorativa. Toda a direita costuma ganhar os sufixos ultra ou extrema, mas você não vê quase nunca o uso do termo “extrema esquerda” ou “ultraesquerdista”. O ex-ombudsman do New York Times, Arthur Brisbane, falava que havia um progressivismo cultural nas redações dos grandes jornais americanos. Não vejo esse tipo de autocrítica no Brasil, com raras exceções.
O senhor conta no livro que não apenas votou no Lula em 2002, como foi à Brasília, para a posse. Hoje, se diz um liberal conservador. O que o levou a essa guinada ideológica? Alguma decepção, algum ressentimento?
Foram várias coisas que se combinaram para eu dar essa virada à direta De um lado, percebi que nunca fui de esquerda por convicção. Era de esquerda porque todo mundo era, porque ser de esquerda era, digamos, como respirar. Fazia parte da cultura da minha geração. Se não fosse de esquerda, não era bem aceito nos lugares, virava praticamente um ET. Por outro lado, estudei no IFCS, o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, que é um dos núcleos da esquerda carioca há décadas. Com a convivência muito próxima com o pessoal de esquerda, fui percebendo uma série de incongruências entre o que eles falavam e o que faziam. Eu lembro que um dos momentos em que tive de profunda vergonha de mim mesmo foi no começo da faculdade. Eu me vi numa situação com um grupo de militantes estudantis do PC do B e do PT, fechando a Avenida Passos, no centro do Rio de Janeiro, na hora do rush, protestando contra o FMI, e o Fernando Henrique, no governo dele. Aí, eu observei o olhar descompromissado da população que circulava na região, os motoristas, o pessoal indo para o trabalho, e fiquei morrendo de vergonha. Aquilo me marcou profundamente. Eu pensei: essa manifestação aqui está falando do povo, mas não do povo real e sim de uma criação poética da própria esquerda. O pessoal não estava preocupado com as pessoas de carne e osso.
Quais foram os pensadores que mais influenciaram essa sua guinada à direita?
Comecei a tomar contato com a literatura conservadora mais recentemente, com autores como o economista americano Thomas Sowell e o filósofo e cientista político alemão Eric Voegelin, e fui me identificando com essas ideias. Vi que tinha um substrato filosófico, teórico, para essas coisas em que eu sempre acreditei. Sempre fui um pouco desconfiado com a ideia de tentar realizar ideias criadas em laboratório. O filósofo Olavo de Carvalho também foi muito importante para mim nesse processo, um autor que me abriu uma série de referências que não tive na faculdade. Os principais nomes do pensamento conservador são inexistentes dentro da academia brasileira. Comecei a me voltar para uma tradição mais clássica e também para a filosofia medieval, escolástica. Li bastante Santo Agostinho, que teve um impacto muito profundo em mim. Tudo isso foi sedimentando uma visão mais sólida e mais consistente. Comecei a ler também muitos críticos da esquerda, ex-intelectuais de esquerda, sobretudo do leste europeu. Além disso, é claro, teve também todo o efeito da atuação da esquerda quando assumiu o poder no Brasil. Comecei a ver que era uma coisa perigosa, o aparelhamento, a mentalidade totalitária de lidar com a sociedade, o inchaço do Estado, tudo isso que aconteceu no País. No fundo, essa minha virada ideológica foi uma redescoberta, meio que uma volta às ideias que eu havia abandonado durante uma parte da vida para me acomodar ao ambiente que me circundava.

A candidatura de Jair Bolsonaro representa os anseios de uma parte da direita brasileira
O senhor afirma que o Olavo de Carvalho foi um dos teóricos que marcaram o seu pensamento. Ele já se declarou várias vezes a favor da candidatura do deputado Jair Bolsonaro à presidência em 2018. O senhor concorda com ele?
O debate de nomes agora é muito prematuro. Mas acho que o Jair Bolsonaro representa uma parte das pessoas que se levantaram contra a esquerda durante esse período. É uma candidatura legítima, que representa os anseios de uma parte da direita brasileira, que não estão sendo correspondidos pela estrutura política do País, que não vinham tendo canais de expressão. Mas prefiro não entrar em discussões eleitorais no momento. Falta um ano ainda para as eleições e precisamos ver se esses nomes que estão surgindo agora vão se efetivar, quais partidos terão candidatos. Acredito que é o momento de discutir a política no sentido mais amplo, questões sociais mais profundas.
Na economia, as declarações de Bolsonaro mostram que as ideias dele são muito próximas das que o PT, o Lula e a Dilma defendem, como uma intervenção estatal muito forte na economia, aquela coisa do “Brasil grande” do Geisel. Como alguém que se diz liberal-conservador pode apoiá-lo, com essa plataforma econômica?
Mais uma vez, prefiro não entrar nessa discussão agora. Acho que não tem muito a ver com as questões mais duradouras de que trato no livro. A própria economia deve ser vista dentro de um contexto cultural. O Brasil tem muitos problemas a resolver antes de a gente discutir programas econômicos.
O senhor diz que o livro foi a sua “carta de alforria”. Por quê?
Estou me referindo especificamente à linguagem da academia. Durante mais de 11 anos, eu me viciei pelo falso rigor, cheio de jargões e tecnicismos que predomina na academia, distante da linguagem culta e da boa escrita. O livro é uma espécie de libertação dessas amarras, onde eu pude me expressar como quis, de forma mais compreensível, sem ficar preso às etiquetas acadêmicas. Olhar para quem está fora da academia, não significa rebaixar a linguagem, mas falar linguagem culta comum, que as pessoas letradas vão entender.

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