O populismo de direita é filho das mentiras que a esquerda populista inventou sobre a globalização
E os dados empíricos refutam os discursos de ambos
O populismo de esquerda e o populismo de direita mantêm retóricas divergentes: o de esquerda insufla o conflito entre ricos e pobres; o de direita estimula o conflito entre nacionais e estrangeiros (e não só os imigrantes, mas principalmente os produtores de outros países).
Ambos, no entanto, possuem um inimigo em comum: a globalização econômica.
Para o populismo de esquerda, a globalização gera uma oligarquia internacional que acumula "mais-valia" à custa da exploração do Terceiro Mundo. Para o populismo de direita, a globalização empobrece a cultura e a economia nacional ao abri-la à interação com o resto do planeta.
No domingo passado, Alberto Garzón, um dos expoentes mundiais da esquerda populista e principal membro da liga formada por partidos de extrema-esquerda espanhóis, a Unidos Podemos, publicou no portal Eldiario.es um artigo intitulado "A extrema-direita é filha da globalização".
Seu artigo traz uma confissão bastante interessante e inusitada: ele afirma que o processo de globalização econômica vivenciado durante as três últimas décadas beneficiou a maior parte da população do Terceiro Mundo. E beneficiou também os "super-ricos". Já a classe média do primeiro mundo viu sua renda se estancar. E é esse estancamento da renda das classes médias dos países ricos que está alimentando seu rancor à globalização, empurrando essa fatia do eleitorado para a "extrema-direita" nacionalista e protecionista.
Para ilustrar essa tese, Garzón recorre ao mundialmente recém-famoso "gráfico do elefante", elaborado pelo economista sérvio Branko Milanovic. Este gráfico, em forma de elefante, mostra o crescimento da renda per capita durante os últimos 30 anos de todos os percentis de renda. Como se pode observar, todas aquelas pessoas que estão entre os percentis 5 e 65 da distribuição global da renda (ou seja, as pessoas mais pobres do planeta) viram sua renda per capita aumentar entre 60% e 80%. Já as pessoas a partir do 95º percentil da distribuição global da renda (ou seja, os "super-ricos", segundo a esquerda) viram sua renda per capita aumentar de 20% a 60%. Por outro lado, a renda per capita dos cidadãos entre os percentis 75 e 90 (as classes médias do Primeiro Mundo) viram sua renda se estancar radicalmente.
Gráfico 1: crescimento da renda per capital real entre todos os percentis da distribuição global da renda entre 1988 e 2008 (em dólares com poder de compra de 2005)
Segundo Garzón, o erro da "esquerda anticapitalista" perante a globalização econômica das últimas décadas foi o de não saber capitalizar o descontentamento dos perdedores da globalização — as classes médias do Ocidente rico — contra o sistema capitalista. Tal espaço eleitoral, diz ele, acabou sendo ocupado pela extrema-direita.
Mas esse diagnóstico é profundamente errado. O líder da Izquierda Unida está comprando a propaganda falsa capitaneada pela direita populista (ou "extrema-direita", como a esquerda gosta de dizer) porque tal propaganda lhe é também bastante útil: ambas as correntes ideológicas têm o objetivo de desacreditar os benefícios econômicos da liberdade econômica em escala global, pois isso lhes é eleitoralmente interessante.
Como será demonstrado abaixo, o gráfico do elefante de Milanovic não permite subscrever à tese de que os perdedores da globalização foram as classes médias dos países ocidentais ricos. Ao contrário: o gráfico, quando corretamente analisado, mostra que essas classes médias foram notavelmente beneficiadas pela globalização econômica.
Os ganhadores: o Terceiro Mundo e as classes médias ocidentais
Ao analisarmos o gráfico de Milanovic, fica claro que os maiores ganhadores da globalização durante as últimas décadas foram os cidadãos mais pobres do planeta, ou seja, aqueles que estão entre os percentis 5 e 65.
Estamos falando de pessoas que, em 1988, usufruíam uma renda per capita de algo entre 200 e 1.300 dólares anuais, e que, vinte anos depois, viram essa renda aumentar para algo entre 250 e 2.100 dólares (com valores já corrigidos pela inflação). Tal aumento real pode até não parecer nada espetacular, mas o fato é que, em termos relativos, isso representou a maior redução da pobreza absoluta na história da humanidade. Tenha em mente que, quando se vive com um nível de renda tão baixo, qualquer aumento pode representar a diferença entre comer e não comer, entre usufruir ou não água potável, e entre ter ou não acesso a itens essenciais.
Este acelerado progresso no nível de vida de mais de 4 bilhões de pessoas já deveria, por si só, servir de argumento para a defesa da globalização econômica. Mais ainda: tais dados empíricos, por si sós, já deveriam fazer com que a esquerda, que sempre se disse muito preocupada com a situação dos mais pobres, abraçasse a globalização econômica.
Afinal, se os movimentos de esquerda estão essencialmente preocupados com a situação dos mais pobres, e, como reconhece o próprio líder da Izquierda Unida, a globalização contribuiu para melhorar substantivamente o nível de vida dos mais pobres, então a esquerda deveria ver com bons olhos o processo de globalização econômica.
Com efeito, os últimos 30 anos foram o único período da história, desde o começo do século XIX, em que ocorreu uma redução das desigualdades globais.
Gráfico 2: evolução do índice de Gini em escala mundial
No entanto, a honestidade intelectual não é exatamente algo muito presente nos debates e embates ideológicos. Para a extrema-esquerda — da qual Garzón é um dos porta-vozes —, a globalização econômica tem de ser combatida por aquele motivo de sempre: os super-ricos formam uma pequena oligarquia que se aproveitou da globalização para se enriquecer de maneira muito mais intensa do que as classes médias.
Mas há dois detalhes que são ignorados: primeiro, de acordo com o próprio gráfico de Milanovic, as pessoas que estão no top 5% da distribuição global da renda enriqueceram quase tanto quanto os cidadãos mais pobres do planeta.
Segundo, o top 5% da população adulta mundial em 2008 representava 250 milhões de pessoas (hoje seriam 275 milhões). Isso é muita gente para tão pouca oligarquia. Com efeito, a renda per capita média dos percentis 95 a 99 era, em 2008, de 26.850 dólares. [À época, algo em torno de R$ 49 mil]. Isso significa que, para a extrema-esquerda, todos aqueles cidadãos que tiveram uma renda anual igual ou maior que 26 mil dólares [49 mil reais] integram a plutocracia global que lucrou com a globalização. Sendo assim, e contrariamente ao que diz Garzón, quase todos os cidadãos do Ocidente rico pertencem a essa categoria.
Os verdadeiros perdedores: os filhotes do socialismo real e o Japão
Portanto, se a imensa maioria dos cidadãos do Ocidente rico está entre os "ganhadores da globalização" dentro do próprio gráfico de Milanovic, quem afinal foram os perdedores? Isto é, quem integra os percentis de 80 a 90, e que viu sua renda se estancar ou mesmo diminuir ao longo do processo globalizador das últimas décadas?
Não foram as classes médias do Ocidente rico, mas sim o grosso da população dos países ex-socialistas e também a fatia mais pobre da população do Japão.
O think tank Resolution Foundation se dedicou a desagregar os dados utilizados por Milanovic para elaborar seu famoso gráfico do elefante e o resultado foi, para dizer o mínimo, bastante chamativo. Se excluirmos o Japão e as economias satélites da URSS, a renda per capita do Ocidente cresceu entre 45% e 70% durante as últimas décadas para todas as faixas de renda. O gráfico abaixo agrupa as rendas mundiais por vintis (e não por percentis), o que significa que ele divide a renda em 20 faixas.
Gráfico 3: no eixo horizontal, as 20 faixas de renda (quanto mais à direita, mais rico é o vintil); no eixo vertical, o crescimento da renda de cada vintil no período 1988-2008; a linha azul mostra o comportamento das 20 faixas de renda nos países avançados excluindo Japão e os satélites bálticos da URSS; a linha laranja mostra o comportamento para o resto do mundo excluindo a China; e a linha vermelha mostra o comportamento do Japão e dos satélites bálticos soviéticos.
1) absolutamente todas as faixas de renda das economias avançadas (linha azul) e das economias em desenvolvimento (linha laranja) enriqueceram com a globalização.
2) no caso das economias em desenvolvimento, os pobres e a classe média ganharam ainda mais que os ricos (como reconhece a própria extrema-esquerda européia e a direita populista do países desenvolvidos);
3) a população mais pobre do Japão e dos satélites bálticos soviéticos foi a única perdedora.
Consequentemente, o estancamento da renda visto nos percentis de 80 a 90 no gráfico do elefante se deve, acima de tudo, ao fato de que a renda de metade do grupo formado pelas populações de Japão e ex-repúblicas socialistas bálticas entra em queda a partir de 1988, e isso empurra para toda a média para baixo.
Milanovic apresentou os dados agregados. A desagregação destes dados mostra novas realidades.
A questão, logo, passa ser: qual foi a culpa da globalização na débâcle das ex-repúblicas bálticas socialistas e do Japão? Absolutamente nenhuma. O PIB dos antigos países socialistas caiu porque as estatísticas econômicas destes países eram desavergonhadamente manipuladas e superestimadas, o que sobredimensinou sua queda quando esses países se abriram e passaram a divulgar dados mais realistas. Já o PIB do Japão se estancou em decorrência do estouro de uma gigantesca bolha de crédito financiada essencialmente por capitais internos e pela péssima política econômica implantada subsequentemente pelo governo japonês. (Veja todos os detalhes sobre o que aconteceu no Japão neste artigo).
Ou seja, a causa do estancamento de uma faixa da distribuição global da renda durante o período 1988-2008 se deveu exatamente ao torpe e exacerbado intervencionismo estatal, que é justamente a bandeira da extrema-esquerda. Se essa fatia da população representa os "perdedores da globalização" não é porque a globalização os empobreceu, mas sim porque a inépcia de seus políticos e o desastre de suas intervenções econômicas impediram que essas pessoas tirassem todo o proveito possível da globalização.
Conclusão: a esquerda populista fornece o combustível ideológico para a direita populista
Em definitivo, os principais beneficiários da globalização durante as três últimas décadas foram as camadas mais pobres da população mundial. Nas economias em desenvolvimento, todas as classes sociais enriqueceram. Nas economias ricas, a renda da classe média não apenas não se estancou, como também cresceu mais de 45% (quando descontada a influência estatística distorciva dos países bálticos ex-socialistas e do Japão).
Ainda assim, há quem possa dizer que os gráficos acima não dizem muito, pois vão apenas até o ano de 2008, exatamente antes da crise econômica. Porém, se atualizarmos o gráfico até 2011 (momento em que o pior da crise já havia sido superado), o que observamos é que os resultados são ainda mais espetaculares para os mais pobres. Mais ainda: os percentis 80 a 90 ficam ainda melhores do que no gráfico anterior.
Gráfico 4: crescimento da renda per capital real entre todos os percentis da distribuição global da renda entre 1988 e 2011 (em dólares com poder de compra de 2011)
Em ambos os gráficos, o resultado evidente é que os ganhadores da globalização foram os mais pobres do planeta, cuja renda mais do que duplicou durante as últimas décadas. Por sua vez, os cidadãos do Ocidente rico não foram prejudicados em termos gerais, ainda que uma minoria deles — ligada àquelas indústrias mais defasadas e que foram afetadas pela nova concorrência global — de fato possa ter sido.
O ressurgimento do populismo de esquerda e de direita observado durante os últimos anos está muito mais vinculado ao empobrecimento derivado da crise econômica de 2008 (causada pela expansão artificial do crédito comandada pelos Bancos Centrais), à imigração muçulmana e a uma reação à cultura do politicamente correto do que ao processo de globalização econômica das últimas décadas. (Qual era a força desses movimentos populistas em 2007, quando o gráfico do elefante de Milanovic já havia computado todos os efeitos da globalização?).
Por fim, vale apontar uma incoerência da esquerda populista dos países ricos: segundo ela, o processo globalizador, não obstante tenha tirado mais de 4 bilhões de pessoas da pobreza, é algo negativo e deve ser interrompido apenas porque prejudica os ganhos de alguns industriais da classe média dos países ricos.
Felizmente, e como acabamos de demonstrar, nem mesmo este raciocínio procede, uma vez que a renda da classe média dos países ricos ocidentais não apenas não se estancou durante os últimos 30 anos de globalização, como ainda cresceu mais de 40% (gráfico 3).
Era de se esperar que a esquerda defendesse com vigor um processo que, como ela própria reconhece, retirou 4 bilhões de pessoas da pobreza.
Infelizmente, o mundo está ficando cada vez mais dividido entre o socialismo nacionalista e o nacionalismo mercantilista. A direita populista não é filha da globalização: em parte, ela é filha das mentiras que a esquerda populista inventou sobre a globalização.
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