Aborto
Publicado originalmente em 11/03/2007, às 12:56
A maioria das declarações a favor ou contra o aborto são discursos que repisam convicções ideológicas, opiniões passionais e modismos intelectuais sem responder às duas questões fundamentais do problema:
1. Existe uma identidade humana no embrião e no feto, independente do tempo de gestação?
2. O feto é dotado de dignidade humana desde a concepção?
Os discursos pró e contra o aborto tendem a reduzir estas perguntas a um grau de simplicidade que permita uma resposta curta e direta, como a dos religiosos, que sustentam que Deus dotou o feto destes dois atributos ou a dos materialistas, que propõem que o feto só se enquadra nestas categorias a partir da formação ou funcionamento do sistema nervoso central.
Estas respostas que apenas enquadram o problema dentro de fórmulas e receituários pré-estabelecidos, só servem para criar uma via de escape que poupa os partidaristas de cada lado de refletir sobre o que seria identidade e dignidade humana, sobre como ter certeza se os critérios que definem e estabelecem estes atributos estão corretos e que um erro nesta avaliação implica na vida ou morte dos entes avaliados.
Qualquer abordagem séria sobre o aborto deve previamente descartar chavões muito repetidos, mas absolutamente irracionais, como o que compara a destruição de embriões ou fetos com a destruição de espermatozoides, igualando gametas e fetos como seres humanos potenciais, mas não de fato.
O fato é que aquilo que nos faz humanos, seja lá o que for, não está presente no espermatozoide, uma célula que se lha dada todas as condições ambientais para que se desenvolva, por si só nunca resultará em outra coisa.
Para que um espermatozoide resulte em ovo, embrião e feto são necessários uma segunda célula e todo um processo de combinação.
O ovo, embrião ou feto, pelo contrário, não depende de outros elementos e combinações externos a ele próprio para se tornar um ser humano completo, precisando apenas que as condições ambientais para seu desenvolvimento sejam fornecidas.
A concepção materialista de que qualquer identidade humana só pode ser reconhecida no feto a partir da formação e do funcionamento do sistema nervoso central possui uma contradição evidente, pois se fundamenta em um misticismo sobre o que seria identidade humana.
Se a identidade humana é um fato material, definida pela estrutura biológica do feto, todos os elementos materiais para a formação do sistema nervoso central já estão presentes no próprio feto, na forma de codificação genética.
Quando se defende que o feto só passa a ter identidade humana após a formação do sistema nervoso central, entendemos esta identidade humana como algo imaterial que passa a incorporar o feto a partir de certo ponto do processo de formação do sistema nervoso.
Os únicos elementos materiais recebidos pelo feto ao longo de todo seu desenvolvimento são, em sentido amplo, nutrientes vindos da mãe.
Propor que a materialidade da condição humana vem de fora do feto implica em defender que o conceito de humanidade pode ser definido como um fluxo de proteínas, o que é obviamente absurdo.
Pode-se afirmar que a materialidade da condição humana não está no fluxo de materiais que formam o feto, mas no processo de formação, cuja identidade é estabelecida por um determinado estágio em que determinados componentes estão formados ou funcionando.
Ora, se a identidade humana está no processo de formação de seus componentes constitutivos é lógico concluir que o processo precede e determina estes componentes, não o contrário.
Se o processo precede e determina os estágios de formação, então é o processo e não os estágios que deveriam definir materialmente a condição humana, sendo que todo este processo já está materialmente contido no código genético do feto.
Se em condições normais todo o processo de formação do feto já está previamente definido em seu material genético, então os estágios do processo representam apenas o mesmo processo ao longo do tempo.
São, pois, condições determinadas e não condições determinantes.
Se o estágio de formação do feto é condição determinada pelo feto, não pode ser uma condição determinante do feto, logo é irracional afirmar que tal fator possa ser usado para se definir se o feto possui ou não identidade humana.
A partir daí estabelecemos a contradição da proposta materialista de que a identidade humana é definida e estabelecida pela formação ou funcionamento do sistema nervoso central, dado que esta formação e funcionamento é determinada pelo processo biológico do feto e não determinante dele.
Quando aceitamos que o feto se torna humano a partir da formação ou funcionamento de algumas de suas partes constituintes, negamos que esta humanidade seja imanente ou intrínseca ao feto. Como as únicas coisas materiais que o feto recebe de fora são nutrientes, a proposição materialista se contradiz no fato de que ou se aceita que todos os fatores materiais relevantes à determinação da identidade humana do feto já estão presentes nele próprio ou entende que esta identidade é determinada por fatores não materiais, o que para o materialismo seria o equivalente a admitir uma interpretação mística do que seria humanidade, o que, logicamente, não pode fazer.
A segunda questão, se o feto é ou não dotado de dignidade humana desde a concepção pede, para uma resposta completa, uma abordagem retrospectiva da formação do conceito de dignidade humana, até o momento atual, em que o conceito resume o entendimento da civilização greco-judaico-cristã ocidental sobre a natureza humana.
Não é o objetivo aqui se lançar a tais profundidades, mas resumir o que interessa nelas para o tema em questão em dois desdobramentos simples.
Ou aceitamos que existe uma dignidade do Homem que é imanente ou intrínseca a todo indivíduo humano, ou não.
Se adotarmos o relativismo para definir o conceito de dignidade humana, temos que incluir nesta relativização nossa própria dignidade.
Não faz sentido dizer que a dignidade de outros seres humanos é relativa e a minha não.
Todo relativismo quanto ao conceito de dignidade humana implica, portanto, numa renúncia, parcial ou total, à sua própria dignidade como pessoa.
Se entendemos os riscos da relativização da dignidade humana, não podemos, em hipótese alguma, nos valer de critérios arbitrários para decretar quem tem direito a esta dignidade e quem não tem.
Simplesmente temos que aceitar que todos os seres humanos são dignos em si mesmos, como uma premissa filosófica ou, como diria Kant, um imperativo categórico.É este imperativo categórico que nos permite, por exemplo, responder à questão de se é um BEM matar uma pessoa para salvar duas.
Obviamente que não, pois a partir do momento que aceitamos a dignidade individual como imperativo categórico, aceitamos também que ela não se define ou restringe pela aritmética. Assim, matar uma pessoa para salvar duas pode ser, na melhor das hipóteses, um mal menor, mas nunca um BEM.
Do mesmo modo, quando se adota escalas de tempo para se decretar se um feto possui ou não dignidade humana, se lança mão justamente de um recurso aritmético, a contagem de unidades de medição que determinariam a partir de que momento específico a dignidade humana passa a incorporar aquilo que uma semana, um dia ou um segundo antes poderia ser considerado apenas um amontoado de células disponível para a extinção.
Pode-se fazer isto, mas não sem o sacrifício da própria dignidade, como vimos.
Escrito por Carlos Lana
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