Cuba, o paraíso socialista
Não são poucos os estudantes e professores universitários que ainda admiram e celebram Che Guevara e Fidel Castro como humanistas. Quando a blogueira cubana Yoani Sanchez veio ao Brasil, além de ter sido esculachada por alguns militantes de esquerda, ainda foi severamente criticada por variados meios jornalísticos de esquerda que associavam suas atividades de crítica ao regime castrista à CIA e sua consequente venalidade. Nenhuma dessas pessoas e desses meios jornalísticos se deu conta de que na terra de Fidel eles não teriam a mesma liberdade de opinião e manifestação que possuem no Brasil.
François Furet dizia que o maior problema do comunismo é a mentira. Ao abolir as liberdades individuais onde quer que tenha chegado ao poder, o comunismo transformou os indivíduos em massas anônimas subservientes ao Estado e à nomenklatura. Descartável, o indivíduo na sociedade comunista só pode existir enquanto servir aos interesses do Estado. O maior inimigo do comunismo é o liberalismo e o Estado de direito, que, já na teoria marxista, corporificavam os interesses de classe da burguesia. Mas na teoria marxista, o comunismo seria a universalização da liberdade humana após uma fase transitória em que a burguesia teria seus bens expropriados e transferidos à classe despossuída, o proletariado.
Mas em nenhum lugar o comunismo chegou ao poder por uma revolução proletária, nem mesmo houve transferência de riquezas, mas apropriação delas pelo Estado, controlado por uma classe de burocratas que instituiu uma espécie de servidão coletiva contemporânea. O século 20 nos mostrou que as utopias não devem ser realizadas. O reino de liberdade que prometem, na prática, resulta no totalitarismo. Mas, por que o socialismo se transforma em seu oposto quando transformado em realidade social? Acontece que o socialismo não se transforma em seu oposto, apenas mostra aquilo que realmente é; isto é, a abolição das liberdades civis e da propriedade não pode se tornar outra coisa senão a emergência de um Estado regulador todo-poderoso, detentor, apenas ele, das únicas liberdades existentes e de toda a riqueza produzida em uma sociedade. Geoges Duby refletiu com muita clareza o que significa a tentativa de impor ou construir uma sociedade igualitária:
Considero, com efeito, que uma sociedade nivelada não dispõe de estímulos. Com muitíssima sorte, pode no máximo desfrutar de uma felicidade sem graça como a dos nambikwaras visitadas por Lévi-Strauss, uma felicidade sonolenta. Normalmente, ela mergulha no marasmo e no desespero, como demonstra uma experiência efetuada durante quarenta anos na Europa do Leste. E em todo caso, não tem mais uma história. Sou portanto decididamente elitista, desde que as elites, naturalmente, não se transformem em castas. A missão da universidade consiste precisamente em contribuir para evitar que isto aconteça, formando essas elites. […] A nação tem com efeito a obrigação de elevar constantemente o nível cultural geral do conjunto da população.
Platão, Thomas Morus e Marx – esses inimigos da sociedade aberta, para usar uma expressão de Sir Karl Popper – idealizaram sociedades como um contraponto aos modelos sociais em que viviam. Esse é o aspecto importante da utopia, é uma crítica, um grito de esperança. Antes de Marx, porém, as utopias permaneciam narrativas trans-históricas evocadas em épocas de forte tensão social. Marx as trouxe para o plano da realização histórica, da práxis social. Ele observou como os ideais da burguesia foram levados à Europa através das guerras napoleônicas e imaginou como seria se o socialismo fosse levado ao mundo através de uma classe revolucionária, consciente de seu papel de vanguarda no cumprimento de leis da história. Marx teorizou o comunismo como numa conquista do proletariado, com a formação de um novo homem que poria fim à pré-história humana.
Quase um século depois de a primeira revolução socialista ter ocorrido e mais de duas décadas depois de ela ter naufragado na história sem que tivesse trazido ao mundo o novo homem e a sociedade sem classes, alguns de seus filhos ainda permanecem de pé. Entre eles, Cuba é um caso à parte. Está mais próxima de nossa realidade e ainda deslumbra milhares de pessoas mundo afora. Nos anos 1960, contexto marcado pela ascensão de ditaduras militares na América Latina, a Revolução Cubana foi abraçada por parte dos intelectuais como uma alternativa ao imperialismo norte-americano, à pauperização que assolava amplas regiões do continente e aos modelos políticos autoritários que, acreditava-se, chegavam ao poder com apoio de Washington. Falar em imperialismo hoje, porém, se tornou mais um lugar-comum do que um recurso argumentativo válido em análises políticas. Mais de meio século depois, a América Latina mudou, os regimes autoritários foram depostos, a esquerda chegou ao poder democraticamente e as relações com os Estados Unidos já não podem mais ser vistas a partir da ótica ingênua e dicotômica vítimas versus algozes.
Mas a ilha de Fidel permanece a mesma ditadura que iniciou em 1959 e, num mundo onde a democracia é cada vez mais celebrada como um bem a ser valorizado e conquistado, a permanência de vetustas ditaduras socialistas não inspira mais uma juventude que hoje luta por outras demandas. O fracasso do socialismo em restituir as parcas liberdades que suprimiu nos países em que chegou ao poder, o sucesso do Estado de bem-estar na Europa e o esvaziamento da política como locus privilegiado de ação social redefiniram nossa percepção da ação coletiva e do papel do indivíduo no mundo produtivo e do trabalho, estes também fortemente transformados pela revolução das comunicações.
Ultimamente temos visto Cuba aparecer nos noticiários por causa do programa Mais Médicos do governo federal. O programa, cujas cláusulas contratuais são dúbias, expôs sua fragilidade quando uma médica o abandonou por causa dos baixíssimos valores que o governo cubano repassa a eles. Muitos ainda têm uma ideia muito equivocada acerca do que é a sociedade cubana sob o regime dos irmãos Castro. Ignoram o racionamento de comida, os salários abaixo de vinte reais mensais, as prisões políticas e as frequentes violações de direitos humanos. De modelo alternativo, Cuba se tornou aquilo que não queremos ser. Podemos defender seu sistema de saúde e educação confortavelmente de nossa sociedade democrática, mas sabemos que não gostaríamos de morar lá, não gostaríamos de ver nossa individualidade ser confiscada pelo Estado e nossos salários (por mais baixos que sejam) ser substituídos pela libreta. O mito de que não há pobreza em Cuba não pode subsistir à obviedade de que todos são pobres em Cuba, exceto os altos dirigentes do partido e do governo. Mesmo as homeopáticas mudanças econômicas introduzidas por Raul Castro após assumir o poder, não podem ter impactos significativos sem a desmontagem da ditadura e do monopólio do Estado sobre a economia e a vida privada dos cidadãos.
Acabo de ler o livro “Fidel, o tirano mais amado do mundo” (editora Leya, 2012) de Humberto Fontova, cubano residente nos Estados Unidos, filho de um refugiado político e cientista político. O livro de Fontova não chega a ser uma pesquisa histórica acadêmica como convencionalmente a compreendemos, mas um verdadeiro libelo anti-castrista. Contudo, é uma obra escrita por alguém que tem um conhecimento apurado do que diz e pertencente a uma família com ascendentes do partido comunista. A obra inicia com a narrativa de um massacre que soldados cometeram contra uma embarcação rústica de 74 pessoas que buscavam fugir para os Estados Unidos em 1994. A força desproporcional usada pelos guardas contra dezenas de pessoas indefesas introduz o leitor a uma realidade dramática vivenciada com certa frequência por aqueles tentam fugir.
A postura pró-Estados Unidos que o autor demonstra em todo o livro é compreensível à medida que ele expressa sua revolta com as informações que expõe. Lamenta, por exemplo, o fato de a invasão à Baía dos Porcos não ter dado certo, em consequência, segundo ele, de o governo americano ter abandonado os invasores à própria sorte. Fala sobre os pelotões de fuzilamento e a drenagem de sangue que o governo fazia dos condenados para venda no mercado mundial. De acordo com ele, os pelotões agiam diariamente desde o dia 7 de janeiro de 1959, quando Che Guevara chegou a Havana, sendo ele próprio o comandante da maior parte dos fuzilamentos.
Fontova traça um Guevara muito distante do que vemos no cinema e nas propagandas de esquerda. “Isto é uma revolução. E um revolucionário precisa se tornar uma máquina assassina brutal, motivada por puro ódio”; “não tenho casa, mulher, pais, filhos ou irmãos. Meus amigos são amigos somente enquanto pensam politicamente como eu”, teria dito o guerrilheiro argentino. Mostra um Guevara admirador de Stálin, um Fidel que buscou inspiração em Hitler (“Minha Luta” era seu livro preferido na faculdade), que decretou feriado nacional quando o ditador fascista Francisco Franco morreu – Fidel o admirava por seu antiamericanismo. Fidel também levou Rámon Mercader, assassino de Trótsky, para Cuba após ter cumprido 20 anos de prisão no México. Em Cuba, Mercader se tornou inspetor geral de prisões, função na qual comandou cerca de 15 mil fuzilamentos e 50 mil prisões em gulags. Fala sobre o paredón, a prática de execuções, por fuzilamentos e com julgamento teatralizados, de milhares de inimigos políticos do regime. Segundo ele, em meados de abril de 1959:
[…] 562 homens haviam sido fuzilados sem julgamento pela Cuba revolucionária. O habeas corpus havia sido abolido. E as prisões de Cuba tinham cinco vezes mais presos políticos do que no regime de Fulgencio Batista. Pela primeira vez na história do país, muitos desses presos eram mulheres. Seu crime? Serem mulheres, filhas e mães dos homens executados. A maioria era de origem humilde, muitas eram negras.
O autor ressalta as altas taxas de suicídio do país, a maior taxa de emigração entre países ocidentais, a maior taxa de encarceramento do globo (em termos proporcionais, Fidel mandou mais pessoas para gulags do que Stálin). Fontova afirma que na década de 1950 (antes da Revolução) o ganho médio diário de um trabalhador rural em Cuba era superior a França, Bélgica, Dinamarca e Alemanha Ocidental. O país possuía uma ampla classe média e apenas 34 por cento da população vivia na zona rural. O país era o terceiro maior consumidor de proteína no hemisfério ocidental. Ele critica a ideia amplamente difundida no mundo ocidental de que Cuba foi prejudicada pelo embargo econômico dos Estados Unidos. O país recebia US$ 5 bilhões anuais de subsídios da União Soviética o que, até o fim da URSS, totalizou 110 bilhões de dólares, um valor cinco vezes superior ao Plano Marshall, segundo ele. Além disso, Jimmy Carter revogou a proibição de viagens a Cuba em março de 1977 e Gerald Ford, dois anos antes, permitiu que empresas estrangeiras e subsidiárias dos Estados Unidos comercializassem com Cuba e ainda convenceu a OEA a retirar suas sanções ao país.
Ressalta que, em 1957, Cuba tinha mais professores e médicos, proporcionalmente, do que os Estados Unidos, possuía a menor taxa de mortalidade infantil da América Latina, estando à frente inclusive de países como Alemanha Ocidental, Japão, Israel e Áustria, taxa de alfabetização de 80% (a maior da América Latina também). O país possuía uma classe média que abarcava mais de um terço da população. Segundo o autor, apesar de Fulgêncio Batista ser um ditador em 1959, não regulava os currículos escolares, a vida privada ou proibia as pessoas de viajarem. Não nega os altos índices de corrupção existentes no governo de Batista e o uso da força (segundo ele, esporádica) usada contra dissidentes. Para Fontova, há uma segregação racial silenciosa em Cuba pouco divulgada na imprensa ocidental. Cem por cento de sua elite governamental é branca e oitenta por cento de sua população carcerária é negra. Para ele, Batista era mais um político do que um militar, evitava a imagem de caudilho e queria aproximar Cuba dos Estados Unidos no sentido de torná-la mais competitiva comercialmente e democrática e lembra o quanto um regime totalitário pode ser incomparavelmente pior do que ditaduras militares:
Lembre-se do livro de Jeane Kirpatrick, Dictatorships and Double Standards, em que ele distingue governos autoritários de totalitários: “Regime autoritários não perturbam o ritmo habitual de trabalho e lazer, as moradias habituais nem os padrões habituais de relações familiares e pessoais […]. Regimes totalitários exigem que o estado tenha jurisdição total sobre a pessoa, sobre a sociedade, e eles não acreditam que devemos dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Eles acreditam que tudo é de César – que o governo deve conter e controlar tudo”. (página 163).
Toda a obra de Humberto Fontova foi escrita em um tom de profunda revolta pessoal com a ditadura castrista. Isso compromete sua abordagem, que carece de rigor metodológico, trabalho profissional com as fontes, análises mais aprofundadas. É mais uma denúncia jornalística, muito semelhante ao estilo narrativo que Palmério Dória desenvolve no livro “Honoráveis Bandidos”. Fica claro que ele flexibiliza o autoritarismo da ditadura de Batista e possui uma visão um tanto romântica do papel libertador dos Estados Unidos na Guerra Fria. Mas tem méritos: levanta questões importantes e apesar da pobreza teórica da obra, usa depoimentos de fugitivos que moram nos Estados Unidos e informações de fontes ainda pouco conhecidas e divulgadas. O mais importante é que ele rompe com a homogeneidade de uma intelligentsia que vê em Cuba a eterna vítima do embargo, o quintal norte-americano que se tornou exemplo de saúde e educação. É hora de deixarmos de celebrar Cuba como o socialismo que não queremos para nós, mas está bom para os outros e hora de deixarmos de agir como Fidel Castro ou a dinastia Kim da Coreia: queremos liberdade para nós, mas não vemos nenhum problema se ela não existir para os outros.
Yoani Sanchez veio nos despertar desse sono dogmático; ao invés disso, muitos não gostaram do fato de ela não trazer boas notícias do paraíso e não cansaram de vasculhar sua vida para encontrar relações com a CIA e um estilo de vida “burguês”. O antiamericanismo que ainda perpassa variados agentes da esquerda latino-americana e que teve em Hugo Chávez o caudilho desmiolado de uma esquerda capenga, é não apenas um sentimento tolo, como produz um embotamento mental análogo à crença de jornalistas da Veja no comunismo petista. Esse antiamericanismo (que alguém já chamou de ideologia oficial dos órfãos do comunismo) é um sentimento que tenta manter de pé o quixotesco romantismo por uma revolução que parou no tempo (exceto para seus dirigentes) e ficou atolada nas poças de sangue dos fuzilamentos e prisões arbitrárias.
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