Estado Islâmico, Sharia e a democracia (im)possível no Islã
Enquanto escrevo estas linhas, o Estado Islâmico conta dezesseis anos de existência. O que seus líderes querem é construir um califado onde a única lei é a Sharia (ou Shariah), o código religioso que regula toda a vida privada e civil. Essa lei deriva do Alcorão e da Suna ou hadith, coletâneas de hábitos e práticas de Maomé registrados por seus familiares e amigos. Esse tipo de governo vigorou na Arábia Saudita do século 7. Califa quer dizer “sucessor”. É a pessoa que sucede Maomé no governo da comunidade. O califado é um estado regido pela lei islâmica e que deve abarcar todos os muçulmanos.
Sharia significa “caminho reto”, o termo que os muçulmanos usam para lei e é adotada em vários países, como Irã, Sudão, Arábia Saudita e no Afeganistão sob o regime talibã. Como no Islamismo não há separação entre sagrado e secular, a sharia é a legislação que abarca todos os aspectos da vida social, econômica e política dos muçulmanos.
Vejamos o que a lei islâmica diz de algumas coisas:
“Ao ladrão e à ladra, cortai as duas mãos em pagamento pelo que tiverem lucrado: um exemplo imposto por Deus” (Alcorão, 5-38).
“A adúltera e o adúltero, castigai cada um deles com cem açoites; e não tenhais pena deles na religião de Deus se credes em Deus e no último dia. E que um grupo de crentes assista ao castigo”. (24-02)
“Os homens têm autoridade sobre as mulheres pelo que Deus os fez superiores a elas e por que gastam de suas posses para sustentá-las. As boas esposas são obedientes e guardam sua virtude na ausência de seu marido conforme Deus estabeleceu. Aquelas de quem temeis a rebelião, exortai-as, bani-as de vossa cama e batei nelas. Se vos obedecerem, não mais as molesteis”. (4-34)
Ou então:
“As piores criaturas, aos olhos de Deus, são os que descreem e recusam sair da descrença” (8-55)
O Alcorão também parte do princípio de que a Terra é plana e que o sol e a lua giram. É um livro do século 7, com leis pré-modernas e que reproduzem os valores morais e a estrutura social patriarcal de sua época.
Na doutrina islâmica, Deus é o único legislador e um homem ou um povo não podem arrogar-se esse direito. É isso que torna o islã tão refratário à noção ocidental moderna de soberania popular que herdamos do Iluminismo, porque ela pode revogar ou alterar mandamentos divinos. O Islã teve várias escolas jurídicas ao longo de sua história, mas no decorrer do século XX vários grupos radicais muçulmanos que surgiram no Egito, no Irã, na Argélia e outros países tinham como objetivo restaurar a sharia e revogar leis que não se coadunavam com ela.
Qualquer governo baseado numa lei religiosa deve suprimir a temporalidade de seu livro sagrado, dividir o mundo entre fiéis e infiéis e silenciar ou eliminar qualquer divergência. Há uma intolerância subjacente a qualquer código religioso considerado revelado e atemporal. Aqui, ficamos alerta com iniciativas da bancada evangélica de tentar inserir princípios religiosos na constituição. E o que seria se fôssemos governados por um código de lei inteiramente religioso? Mesmo fora da zona de influência do Estado Islâmico, nos poucos lugares onde há alguma liberdade de consciência, ela é muito tênue e frágil, como exemplifica o vídeo de um programa de uma TV egípcia onde a apresentadora insulta gratuitamente um convidado por ser ateu (Clique aqui para ver). Por causa da sharia, as dificuldades dos muçulmanos com a democracia são gritantes.
Mas o Islã não forma um bloco homogêneo. Há segmentos distintos com distintas interpretações da tradição e de seus textos sagrados. Além de sunitas e xiitas, um dos mais importantes é o wahabismo, doutrina oficial da Arábia Saudita, cujo nome remonta a um pregador do século XVIII chamado Ibn Abad Al Wahab, que fundou uma doutrina baseada numa aplicação rígida das leis e na purificação da religião de variadas contaminações, como práticas religiosas que não estivessem no Alcorão e na suna. Na era contemporânea, por causa da riqueza oriunda do petróleo, a Arábia Saudita já financiou vários empreendimentos fundamentalistas em outros países, além de centros e institutos de difusão da fé islâmica em países ocidentais.
Uma das características de muitos muçulmanos é sua visão de que o Islã está relacionado especialmente à justiça distributiva e veem nisso uma forma de democracia, além de haver pessoas que adotam perspectivas intelectuais ocidentais. Quem fez uma observação sobre isso foi Stephen Prothero, doutor em estudos de religiões por Harvard e professor da Universidade de Boston, no livro As Grandes Religiões do Mundo (Editora Elsevier, 2010, p. 51):
Os progressistas indonésios diferem dos moderados ao falarem mais vigorosamente do pluralismo religioso e dos direitos da mulheres, e ao se inclinarem mais generosamente ao pensamento de intelectuais da Europa, Estados Unidos e América Latina.
Os muçulmanos com quem me encontrei durante uma visita a Jacarta – em um centro cultural e intelectual desta grande ilha do arquipélago – eram moderados e progressistas. Todos estavam adaptando livremente o islã às circunstâncias de vida locais, mesclando as tradições antigas com as deles próprios. Todos fizeram pouco-caso de qualquer ideia sobre um choque de civilizações entre o islã e o cristianismo ocidental. Qualquer choque que exista, eles me disseram, é dos fundamentalistas de todas as crenças com seus correligionários moderados e progressistas. Enquanto estive na Indonésia pesquisando para este livro, não vi uma mulher sequer coberta da cabeça aos pés, como é comum no Irã e no Afeganistão, e nas zonas rurais indonésias nenhuma mulher usava qualquer cobertura na cabeça. Quando perguntei a Zuli Qodir, líder de um grupo moderado Muhammadiyah, de que se tratava o islã, ele respondeu: “Islã é justiça, igualdade e democracia”. Outro líder muçulmano me disse que a “a essência do islã é a preocupação com os pobres”.
A ênfase do islã na noção de comunidade (ummah) para o cumprimento da justiça e igualdade pode inibir o desenvolvimento de princípios voltados para as liberdades individuais e a própria concepção de individualismo, como o Ocidente moderno conheceu desde a Renascença. Por isso, apesar da posição não extremista e aberta à tolerância religiosa de alguns grupos, a doutrina islâmica também tem fortes restrições ao reconhecimento dos direitos de minorias, como os ateus, chegando mesmo a rejeitar seu direito à existência. Nesse ponto reproduzo aqui um trecho do livro O Islã e a política de Peter Antes, filósofo e teólogo da Universidade de Hannover (editora Paulinas, 2003, p. 131):
O último exemplo apresentado alude ao problema das minorias e seus direitos. A posição clássica [do islã] a respeito é clara: existem em princípio quatro categorias de seres humanos: pagão (politeístas), “adeptos do Livro”, muçulmanos e representantes de ideologias novas. Os pagãos e os representantes das religiões (por exemplo, os bahá’is) e ideologias (por exemplo, os ateístas) mais novas não têm, no conceito clássico da charia, qualquer direito à existência, porque eles tinham tradicionalmente apenas as alternativas de conversão ao Islã ou a morte. Ao longo da história e mesmo na atualidade, essa posição sempre foi controversa. O que levou algumas vezes na Índia, durante o período dos mongóis islâmicos (1526-1828), a perseguições radicais da maioria hindu, mas evoluiu para uma atitude parcialmente tolerante, que hoje se apoia acima de tudo no verso do Alcorão “na religião não há coração” (2,256). (Grifos meus)
Poucos grupos são mais perseguidos nos países muçulmanos hoje do que os ateus. Em 2013, um grupo de ex-muçulmanos residentes em Paris se manifestou pelo direito de declarar sua descrença e criticar a religião islâmica (Fonte: G1). Em 2012, uma pesquisa da União Internacional Humanista e Ética relatou que, em todo o mundo há sete países onde ateus e céticos podem ser condenados à morte se suas crenças se tornarem públicas e todos eles são muçulmanos: Afeganistão, Irã, Ilhas Maldivas, Mauritânia, Paquistão, Arábia Saudita e Sudão. Em outros lugares como Indonésia, Kwait, Egito e Jordânia ateus podem ser perseguidos ou até presos por blasfêmia (Fonte: Gospel Prime).
A Turquia é um Estado laico, apesar de todas as dificuldades que teve e ainda tem pra se manter assim. Muitos turcos muçulmanos que moram no exterior apoiam o laicismo e isso prova que a expectativa de formação de outros Estados seculares no mundo muçulmano não é apenas uma utopia ocidentalizante, mas uma perspectiva de futuro que pode sinalizar para dias melhores para eles próprios e as minorias perseguidas em vários de seus países.
Muitos muçulmanos que vêm morar no Ocidente encontram em nossas terras o que não existe em seus países de origem: ambientes de tolerância religiosa, liberdade de consciência e leis civis que inibem justiçamentos e violência contra a mulher. Mas há uma diferença entre viver em uma democracia ocidental e absorver e cultivar seus valores e nesse ponto virtualmente todos os países muçulmanos ainda têm um longo caminho a percorrer, com ou sem Estado Islâmico.
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