os 500 são outros
DE LUTERO À UNIVERSAL
Neopentecostais são eco polêmico de reforma que rachou cristianismo
Antes de chegarmos a Edir Macedo, R.R. Soares, Valdemiro Santiago, Silas Malafaia e tantos outros líderes evangélicos que hoje dão voz a um batalhão de religiosos que não para de crescer no Brasil, é preciso voltar à pergunta que mudou o curso da civilização ocidental 500 anos atrás.
Afinal, qual é o preço da fé? Inestimável, ao menos em moedas do homem. A partir dessa premissa, há meio milênio um frade alemão iniciou sua luta contra um papado que via como corrupto e ganancioso. Por tabela, contribuiu para incendiar, figurativa e literalmente, uma Europa às voltas com o Renascimento.
Ao fustigar o “balcão da fé”, no qual a Igreja Católica perdoava pecados em troca de pagamentos, Martinho Lutero (1483-1546) deslanchou a Reforma Protestante –movimento que pulverizaria um cristianismo até então monopolizado pela Igreja Católica, dando origem às congregações evangélicas que atualmente dominam 12% do quinhão religioso global e 32% do brasileiro.
Erram os que “pregam que a alma sai do purgatório assim que se ouve o tilintar da moeda ao cair no cofre das ofertas”, pois “o papa não tem nem vontade nem poder para remir quaisquer penitências”, cravou Lutero em suas 95 teses críticas ao pontificado de Leão 10º –o documento foi fixado em 31 de outubro de 1517 na porta de uma igreja de Wittenberg, vila no leste do que hoje conhecemos como Alemanha. A afronta levaria à sua excomunhão quatro anos depois.
Esses recibos de perdão tinham nome: indulgências, do latim “indulgeo” –“para ser gentil”. Mas gentileza teve pouco espaço nos séculos que se seguiram, com guerras religiosas que opuseram católicos e protestantes europeus –estima-se que a dos Trinta Anos (1618-1648) tenha dizimado um terço (1.500) das cidades do atual território alemão.
A custo de quê? “Não podemos começar a compreender quem somos como ocidentais sem antes entender as mudanças operadas pela Reforma”, diz Carlos Eire, professor de estudos religiosos da Universidade Yale.
Ideia subscrita pelo historiador Diarmaid MacCulloch, que dá aulas em Oxford sobre a história das igrejas. Entre os “frutos impressionantes” que o movimento produziu, há o sepultamento “da ilusão de uma estrutura religiosa que pudesse representar todo o cristianismo”, afirma à Folha.
“Lutero tinha esperança, mas nenhuma nova Igreja Católica substituiu seu eixo corrupto. O que veio: uma gama de variantes do protestantismo, que juntas formam a parte mais dinâmica e em ascensão da família cristã.”
SUCESSO MATERIAL
Ecos de 1517 se esparramam pela história moderna. Nos EUA, são 46,5% os protestantes –grupo religioso cujos valores alicerçaram o modelo capitalista de sociedade, como defende o alemão Max Weber em “A Ética Protestante e o ‘Espírito’ do Capitalismo” (1905).
Em 1966, o pastor Martin Luther King, um dos ícones do ativismo americano, colou com uma fita adesiva suas próprias teses (pró-direitos civis) na porta de metal da Prefeitura de Chicago, refletindo o ato do reformador que inspirou seu nome de batismo.
A história dessa religião no Brasil remonta a uma igreja fundada por índios “europeizados” no século 17 até chegar ao recente avanço neopentecostal. E a maré está a seu favor, na opinião de Ricardo Mariano, professor de sociologia da USP especializado no segmento.
Em 1966, o pastor Martin Luther King, um dos ícones do ativismo americano, colou com uma fita adesiva suas próprias teses (pró-direitos civis) na porta de metal da Prefeitura de Chicago, refletindo o ato do reformador que inspirou seu nome de batismo.
No Brasil, o pentecostalismo e sua inflexão mais moderna, que têm na crença na cura pela fé uma das principais características, são a face mais forte do protestantismo.
Linhagem do segmento que mais cresce hoje, com galhos que se espalham da Coreia do Sul ao Brasil, o fruto neopentecostal caiu longe da árvore protestante. Ao menos é o que afirmam ramos mais tradicionais da religião, que apontam a chamada Teologia da Prosperidade, abraçada por esse segmento, como uma gangrena no espírito da Reforma.
A nova teologia prega que se pode contar com Deus para conquistar sucesso material. “Muitas vezes tem-se a impressão de que essa relação com Deus se resume a uma barganha, cujo fim maior é a obtenção de benefícios, de bênçãos. Mas a vida cristã não consiste somente em glória e sucesso. A cruz, a dor, o sofrimento são componentes dela”, diz o pastor Rolf Schünemann, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil.
Mas que espécie de Deus faria o homem “para ser miserável”? É o que questiona o bispo Robson Rodovalho, da Sara Nossa Terra –igreja sob o selo neopentecostal, tal qual a Universal do bispo Edir Macedo e a Mundial do apóstolo Valdemiro Santiago (conhecido pelo chapéu de caubói).
“O homem não pode aceitar a pobreza como uma determinação de Deus para sua vida. Miséria não é castigo pelos pecados que cometemos, é maldição. Logo, devemos lutar contra ela de todas as formas”, afirma.
Há ainda entre as igrejas históricas mal-estar com a agressividade de algumas neopentecostais na cobrança do dízimo. “É um retorno perigoso à doutrina que Lutero condenou: a de que você pode comprar a salvação e, quanto mais compra, mais leva em troca”, diz o professor MacCulloch, de Oxford.
Afinal, qual é o preço da fé?
Em 1524, Erasmo de Roterdã atacou um novo tipo de cristianismo, que, divorciado da Igreja Católica, contagiava a Europa. Para o holandês, os dissidentes distorciam a Bíblia para que ela se encaixasse na mensagem que desejavam.
“Como garotos que amam tão sem moderação que imaginam ver a amada em todos os cantos, ou, num exemplo ainda melhor, como dois combatentes que, no calor do duelo, transformam o que tiverem ao alcance em mísseis, seja um jarro, seja um prato.”
Num ponto “Erasmo estava certo”, diz Alec Ryrie em “Protestants: The Radicals Who Made the Modern World” (Protestantes: os radicais que criaram o mundo moderno). “Protestantes são apaixonados e lutadores. Discutirão com qualquer um sobre quase tudo. Se olharmos para as grandes batalhas ideológicas do último meio milênio, serão vistos nos dois lados: contra e a favor de escravidão, imperialismo, fascismo, comunismo.”
Paixão e luta são palavras que resumem bem a escalada dessa fé no Brasil, onde os católicos constituíam 99% da população na virada do século 20 e hoje encolheram para 52%, enquanto evangélicos já são 32%, segundo o Datafolha.
Afinal, é um bloco que, embora um tanto heterogêneo, costuma despertar sentimentos polarizados no país –um “ame ou odeie” entre quem vê nos evangélicos um farol moral numa sociedade decadente ou um bando intolerante contra quem não dança conforme sua música, dos adeptos de credos afro-brasileiros aos ativistas de direitos LGBTQ.
Em seu livro, Ryrie diz que “esta onda de conversão na América Latina é uma das mudanças religiosas mais dramáticas da história moderna”. O continente e também a África, hoje, são terra fértil para o evangelismo. “A secularização, presente sobretudo no cenário de sua emergência, a Europa, faz com que haja um deslocamento cada vez maior da presença da cristandade para o hemisfério Sul”, afirma o pastor luterano Rolf Schünemann.
A história dessa religião no Brasil remonta a uma igreja fundada por índios “europeizados” no século 17 até chegar ao recente avanço neopentecostal. E a maré está a seu favor, na opinião de Ricardo Mariano, professor de sociologia da USP especializado no segmento.
“O cenário evangélico brasileiro, hoje, é radicalmente distinto dos contextos históricos vividos por Martinho Lutero e João Calvino”, diz.
Se esses e outros reformadores dos anos 1600 foram perseguidos pela Igreja Católica, “no Brasil atual os evangélicos gozam de plena liberdade religiosa. Comandam boa parte dos 20% da programação da TV aberta ocupados por grupos religiosos. Dispõem de vasto mercado editorial, extensa rede radiofônica, inúmeros sites e frentes parlamentares país afora”, afirma.
A eleição de Marcelo Crivella (PRB), sobrinho do bispo Edir Macedo, para prefeito do Rio em 2016 foi conquista inédita dos evangélicos no Executivo de uma grande capital.
Oito anos antes, no livro “Plano de Poder”, o líder da Igreja Universal já realçava a importância de acordar o eleitorado de sua religião, um “gigante adormecido”, para que assim se chegasse a um “projeto de nação pretendido por Deus”, um “sonho divinal”.
MOSTRA TUA CARA
E qual é a cara dessa fatia florescente na população? Pesquisa Datafolha realizada no fim de setembro, com 2.772 entrevistados de 194 municípios, revela um pouco desse perfil.
Evangélicos: 51% têm renda de até dois salários mínimos, e 16% chegam ao ensino superior. Quanto à cor declarada, 29% se dizem brancos, 45%, pardos, e 16%, pretos.
Na população em geral, 47% ganham dois pisos salariais, e 20% entram em universidades. A cor: 34% brancos, 42% pardos e 15% pretos.
Além de menos branco e universitário, trata-se de um filão mais jovem: a idade média do evangélico é de 38 anos, ante 39,5 do brasileiro como um todo e 41,6 do católico.
Católicos se destacam entre os moradores do Nordeste (62%) e de municípios com até 50 mil habitantes (61%). Já evangélicos alcançam maiores índices no Sudeste (36%) e em cidades com mais de 500 mil habitantes (36%).
Entre as igrejas de preferência, 28% dizem frequentar a Assembleia de Deus, que tem sob seu guarda-chuva uma miríade de ramificações que não necessariamente se alinham.
Para ficar num exemplo político: em 2010, algumas Assembleias apoiaram a petista Dilma Rousseff, outras, o tucano José Serra, e parte endossou a então verde Marina Silva, única evangélica do trio.
Entre os que se classificaram nessa fé, 11% pertencem à Igreja Batista, 6% à Congregação Cristã e 5% à Universal. O restante dos fiéis se pulveriza em outras denominações.
Neopentecostais são mais adeptos do “nomadismo religioso” do que a média: 62% deles afirmam já ter mudado de religião, enquanto, na população geral, só 31% o fizeram. São também os mais assíduos em cultos religiosos: 62% dizem ir a cultos mais de uma vez por semana, taxa que cai para 16% entre católicos.
O Datafolha questionou: “Na sua opinião, evangélicos sofrem ou não preconceito por serem evangélicos no Brasil?”. No geral, 57% declararam que sim, o grupo sofre algum tipo de discriminação. A percepção de que o segmento é alvo de preconceito cresce entre eles (73%). E os neopentecostais se veem ainda mais como vítimas de intolerância (82%).
Para o bispo Robson Rodovalho, falta compreensão sobre essa parcela mais “moderna” dos evangélicos, capaz de se adaptar ao Zeitgeist. “Lutero mostrou como podemos questionar as coisas, tocar no que muitas vezes é considerado intocável. Neopentecostais estão afinados com essa busca de uma igreja mais adequada ao contexto histórico.”
Se Lutero aprovaria ou não os desdobramentos de seu ato de rebeldia contra o papa são outros 500. O prócer da Reforma acreditava que o mundo que ajudou a transformar acabaria ainda em seu ciclo de vida. E, caso pudesse viajar no tempo, se chocaria com a baixa da fé entre europeus e com o que virou o cristianismo contemporâneo, segundo Carlos Eire, da Universidade Yale.
Resta especular o que acharia de inovações como o novo evangelista de Wittenberg: o BlessU-2 ,um robô que oferece orações em cinco línguas.
PODE CHAMAR EVANGÉLICO DE PROTESTANTE?
Os dois termos podem ser usados como sinônimos? Igrejas históricas, consideradas herdeiras mais diretas da Reforma, como a Luterana e a Presbiteriana, costumam ser chamadas de “protestantes”. O termo vem do documento formal de protesto em que os luteranos manifestaram sua oposição à doutrina católica, em 1529.
Já “evangélico” deriva da palavra “Evangelho”, que significa “boas novas”, de cujos ensinamentos o protestante é seguidor. Hoje, o termo aparece mais ligado às vertentes pentecostal (como a Assembleia de Deus) e neopentecostal (como a Universal) da fé protestante. Para o teólogo Marcelo Rebello, “toda igreja não católica e que professa a fé evangélica é protestante na origem”.
Um exemplo é o da igreja Luterana, aqui na aba protestante, e na Alemanha chamada de “evangélica”.
Sem comentários:
Enviar um comentário